TRINTA E NOVE

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ESTE CAPÍTULO CONTÉM CENAS DE AGRESSÃO FÍSICA E PSICOLÓGICA EXPLÍCITA, PODENDO GERAR GATILHOS. EM CASO DE DESCONFORTO, NÃO FORCE SEU LIMITE. A caixa de mensagens da autora está sempre aberta para conversar sobre o assunto.


Meu pai não me deixa dormir na casa de meu irmão, mas, tirando isso, não há nenhum indício de exasperação ou irritação em sua feição. Na verdade, ele tem a expressão tão impassível que, enquanto dirige para casa, fico me perguntando se um dia alcançarei esse nível de não-afetação, tão típica dos meus tios, tão valeniana que é difícil descrever.

— O que vai acontecer? – pergunto.

Ele demora tanto tempo para responder que a frase paira entre nós como um manto escuro e abafado. Desvio o olhar para encarar a cidade tremulante pela luz fraca e amarelada dos postes, tentando não demonstrar minha angústia. Meu pai não me amaria mais se percebesse minha fraqueza. Não que ele me ame muito agora.

— Você está protegida – ele diz, por fim.

— Não foi isso que perguntei.

— Claro que não. Mas quanto menos você souber, melhor é.

— Por quê?

Simas suspira, sem tirar os olhos do caminho. De novo, leva minutos até voltar a falar. Estamos entrando no condomínio quando ele inclina a cabeça para o lado e diz:

— O garoto estava com problemas com a justiça. Vou resolver para ele. E todos ficarão bem.

— Ah – mordo o lábio com força. Parece tão errado. – E Fernando?

— Fernando está bem.

— Karine concordou?

Meu pai dá de ombros, mas dessa vez sei que não vai responder.

— Que tipo de problemas com a justiça?

— Dafne... – a voz de Simas oscila, a única demonstração de que está mais irritado do que deixa transparecer. – Se você faz alguma coisa é necessário que o universo se realinhe. – É quase a mesma frase de Pedro e isso quase me faz sorrir, mas Simas conclui, antes que eu ache engraçado as semelhanças de pai e filho: – Se você faz uma coisa errada, cabe a sua família consertar, mesmo que as atitudes sejam consideradas erradas pelo resto do mundo. Portanto, se você sabe que não vai gostar da minha resposta, fique calada.

Pisco com força enquanto ele entra na nossa garagem. A casa está tão silenciosa que, quando o motor desliga, levo um sobressalto com a profundidade da falta de barulho. Olho para o carro vermelho de Patrícia, estacionado ao meu lado, impecável e brilhante.

— Como ele está? – sussurro. – O garoto.

— Vai sobreviver.

— Mas a que custo?

Simas suspira, coçando a têmpora.

— Dafne, você não é a primeira Vale a fazer merda e não vai ser a última. Só esqueça o dia de hoje e tudo vai ficar bem. É para isso que nossa família existe, para que tudo fique bem para nós.

E, depois disso, ele sai do carro, sem olhar para trás.

Pisco, confusa, e as coisas rodam a minha volta, por causa do cansaço, da adrenalina que baixou, da conversa sem sentido, da despedida com Emily pouco tempo atrás. Não parece ser o tipo correto de reação de um pai, mas eu devia ter imaginado: os Vale não são lembrados por serem corretos. Fecho os olhos com força para tentar fazer o que meu pai sugeriu – não ficar lembrando sobre o que aconteceu – mas é claro que sou muito mais fraca do que o resto da família e as imagens retornam coloridas, cada vez rodando mais forte, até eu achar que vou cair.

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