Emily caminha a passos firmes pela trilha da mata em que adentramos, com uma lanterna iluminando parte do caminho. Mas ela quase não olha para a direção, e, a meia-luz, me parece claro demais que ela conhece a região muito mais do que eu. Ela cantarola uma música que não conheço, mas com uma melodia bonita que acalma um pouco os batimentos do meu coração.
— Para onde estamos indo?
— Como se importasse agora, não é? – ela fala e dá para ver seu sorriso – Se eu quisesse te matar, esse seria o cenário perfeito.
Bufo, tomando cuidado aonde piso. Estava mesmo escuro e estávamos cada vez mais longe dos barulhos das pessoas e cada vez mais dentro da mata.
Nunca havia ido ali.
É estranho como passamos muitos anos morando num mesmo lugar, achamos que conhecemos, então, por alguma razão, descobrimos que não era como a gente achava que era. Lugares são como pessoas, no fim das contas. Não importa quantas décadas ficamos neles ou com elas, no fim nunca os conhecemos completamente.
— De quem é a música?
— What? – Emily gira o rosto para me encarar – Ah, eu estava cantando, é? – arqueio a sobrancelha e ela me dá um sorriso – É uma música de um amigo meu. Ele me mandou hoje de manhã e não sai da minha cabeça, aquele desgraçado.
— É bem bonita.
— Não é? Colin tem muito talento – ela empurra uma folhagem para o lado – Está começando a fazer sucesso na Irlanda, talvez consiga chegar na Europa. Provavelmente, seria a melhor coisa que aconteceria com ele. Não é meu estilo de música, mas it's cool.
— As pessoas sempre dizem que Dublin é muito musical. É verdade?
— Anram. É uma cidade que pulsa música vinte e quatro horas por dia. Pode ser enlouquecedor.
— Mas você sente falta – concluo, pelo seu tom de voz.
— A gente sempre sente falta da nossa casa – ela assente e vira a esquerda.
É uma frase simples, mas sinto o desconforto dentro de mim, enquanto os galhos se quebram abaixo do meu pé. Não sei dizer o que estou sentindo, nem que tipo de desconforto é, mas é o que Emily sempre me causa. Como se, no meio de uma noite fria, você perdesse seu edredom mais quente, e não o achasse ao acordar. Então, você se encolhesse na cama, para se proteger, do que é inevitável, sentindo cada parte de seu corpo se congelar aos pouquinhos – primeiro os dedos, então as pernas e os braços, até chegar ao coração.
— Por que você estava tirando fotos se você não queria? – ela pergunta, depois de alguns minutos em silêncio.
— Porque meus pais me obrigaram – bufo – Eles acham que a maior qualidade de uma mulher é ser bonita.
— Você nem é tão bonita assim – ela me olha.
— Obrigada – dou um sorriso.
Emily me sorri de volta.
— We're welcome, sweet. Chegamos na minha cabana. Só preciso trocar de blusa e, então, te levo até a rua principal que tem aqui embaixo.
— Onde estamos?
— Hmm, se descer por aqui – ela aponta – você vai sair na rua dos bares.
— Você... – pisco os olhos, encarando a cabana azul, com uma fogueira apagada no meio do caminho – mora aqui?
É um lugar estranho para se morar. Está arrumado, há lampiões espalhados, o que torna o espaço muito mais uma clareira do que uma mata, e o chão está relativamente limpo. Mas deve ser desconfortável de se viver. Talvez até mais do que perder o edredom numa noite fria.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...