DEZESSETE

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Baggins não gostam de aventuras. Eles são uma família de Hobbits muito tradicionais que prezam não só por boas comidas e segurança, mas por uma casa bem arrumada e, de preferência, longe de intrusos. É mais ou menos isso que Tolkien narra nas primeiras páginas de O Hobbit, o livro de cabeceira do meu irmão, que, consequentemente, acabou tornando-se um livro de muita importância na minha infância – afinal, foi esse o primeiro de muitos que Pedro leu para me fazer dormir. Poucas linhas depois, no entanto, o mestre da fantasia, como defende meu irmão, fala da família Tuk – uma família que era, por si só, sinônimo de desconfiança e confusão no consenso dos Hobbits em geral.

É dessa relação duvidosa que nasce Bilbo.

E é sobre isso que estou pensando enquanto estou prestes a encontrar Emily. E, se tudo correr bem, a irmã dela também.

Os Vale são mais Baggins que Tuk – não porque eles não sejam sinônimo de desconfiança e ignorem confusões, mas mais porque eles têm uma bela imagem para manter. Hobbtis prezam por belas imagens e, de um modo geral, um Hobbit aventureiro é olhado torto por todos os outros Hobbits da vizinhança. É claro que eu passei, e muito, da altura para ser uma Hobbit – e tudo bem, a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts sempre me interessou muito mais – mas, no geral, eu me identificava mais com os Tuk.

É óbvio que eu me identificava mais com a parte problemática da coisa toda. Porque, óbvio, não havia um grão de esperança em mim que eu, um dia, por milagre, me encaixasse realmente na família que tinha. Uma coisa para lá de preocupante porque se Pedro, que era mais Baggins, não teve facilidade para romper com os Vale... eu, com certeza, não teria mais sorte do que ele.

E lá estava eu, arriscando mais ainda, piorando mais ainda toda a situação que nunca foi boa.

Não havia o menor motivo para eu estar pensando tudo isso, no entanto. Mas o que se pode falar sobre nosso fluxo de pensamento? Nem sempre eles seguem uma linha lógica e compreensível.

— Eu realmente posso chegar sozinha ao endereço – é o que Emily diz, assim que me vê, antes mesmo de cumprimentar.

— Eu nunca disse que não podia – é a minha resposta.

Emily cerra os olhos para mim e empina o queixo, mas mesmo que ela tente, a garota não passa de uma miniatura na minha frente. Acho que ela quer me amedrontar. Mas, como um poodle filhote, eu só consigo achar engraçadinho.

O que, é claro, me amedronta muito mais do que a expressão dela.

— Você é uma garota bem idiota – ela dá de ombros, por fim.

— É o que meus pais costumam dizer, então, se você quer me ofender, tente algo mais pesado do que isso na próxima vez.

Emily entorta a boca e seus lábios tremem. E, então, desvia o olhar. Os dedos de sua mão, com unhas roídas, batucam em sua calça jeans toda rasgada, e ela chuta para longe uma pedra que estava bem ao seu lado. A pedra faz clac-clac pelo asfalto cheio de buracos da rua em que estávamos, e quase acerta a lataria de um carro que passa por ali no mesmo momento. Foco minha atenção em tudo isso para não precisar perceber as sensações que ocorrem comigo. Porque não quero saber delas. Porque não consigo compreende-las.

— Sua irmã está me esperando – eu digo – E eu prometi que iria. Não sei quanto a você, mas não costumo quebrar promessas.

Emily chuta outra pedra, com mais força dessa vez. Seu rosto está vermelho e sinto que cada parte dela está prestes a gritar, as narinas estão dilatadas e ela respira pela boca, puxando o ar com muita força, como se pudesse mastiga-lo antes de engoli-lo, fazendo um barulho estranho, quase animalesco, com a garganta.

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