Mando uma mensagem no sábado para Karine, perguntando como Fernando está e se podia visita-lo. Entendo a ausência de resposta como um não e me sinto sozinha e mal por isso. Fico preocupada porque meu melhor amigo teve duas crises na mesma semana, e isso era um recorde dos últimos anos. Desde que ele começou um tratamento novo com o pessoal da psicologia, ele havia se equilibrado muito mais em suas crises. Mas, embora sujeitos autistas possam ser conhecidos como extremamente previsíveis, qualquer coisa pode tira-los da linha e os fazerem pirar.
Logo após o almoço, estou me arrumando para ir ao treino, quando Pedro bate na porta. Ainda estou na sua casa, mas, desde ontem, não nos falamos. Fingi, colocando meus fones de ouvido no máximo, que não ouvi a briga intensa que ele teve com Vênus. E também ignorei a ausência dela pela manhã no café. Pedro estava silencioso e eu preferi não fazer nenhuma pergunta, para não o aborrecer mais do que sua expressão, com sua veia saltitante na testa, demonstrava que estava.
— Você tem treino? – ele pergunta, me vendo calçar meu tênis.
— Anram. Jogamos contra o Rio de Janeiro na quinta – faço uma careta, sentindo meu estômago embrulhar só de mencionar o melhor time de vôlei feminino do Brasil – e não queremos outra humilhação.
No ano passado, quando Ponte Belo estava estreando na Liga Nacional, fomos derrotados duas vezes pelo Rio que passeou sobre nós. Três sets a zero, nos dois jogos. E, o que me envergonhava bastante, o fato de que não somamos nem cinquenta pontos nas duas partidas.
Eu não fazia parte do time principal, mas isso não queria dizer que não me sentia intensamente nauseada pela derrota esmagadora.
— É aqui, não é?
— É – calço o outro pé – Seis da tarde. Você vai?
— Com certeza – ele arrisca um sorriso, mas a veia na sua testa mostra que continua irritado com alguma coisa – Você está bem?
— Preocupada com Fernando, porque Karine ainda não me respondeu – indiquei o celular com a cabeça – E um pouco nauseada agora que lembrei que esse jogo está mais perto do que queria. E você?
Pedro mexeu a mão, dando de ombros e desviando o olhar.
—Daf – ele me encara de novo – Eu não posso controlar Vênus – revira os olhos – mas, por todo amor que tenho por ti, não se mete com essa história da irmã da garota de cabelo azul, ok?
— Emily – falo, pegando minha mochila – Ela tem nome, Pê. É Emily.
— Certo. Tudo bem.
— Com o que você está preocupado?
Pedro enfia os dedos nos seus cabelos anelados, fechando os olhos.
— Você tem uma carreira pela frente, entende? Uma carreira que não recebe o impacto que é ser um Vale, como outras carreiras que pudesse escolher. Eu sei o quanto o vôlei é importante pra você. E também sei que os jornais dessa cidade não negariam um escândalo. E... essa garota, Emily, não é culpa dela, nem nada, e admiro o esforço dela de encontrar sua irmã... Mas... a irmã dela está envolvida com traficantes. Entende?
— O que você tá sabendo? – arqueio a sobrancelha.
— Não muito mais do que você, mas o suficiente para ficar preocupado.
— Vênus conseguiu falar com ela?
Ele faz uma careta engraçada, o rosto ficando quase tão vermelho quanto o cabelo, mas não responde. Ao invés disso, me oferece uma carona para a quadra.
— Não, tudo bem – balanço a cabeça – Posso ir andando. Faz bem pros pensamentos.
Pedro assente uma vez e cerra os olhos para mim.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...