QUINZE

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— Dafne veio dizer olá para Fernando – eu falo, da porta do quarto azul de Fernando.

Ele está em frente à televisão, jogando algum jogo sem sentido de luta no videogame. Mas quando escuta minha voz, desvia o rosto por dois segundos, e pisca várias vezes enquanto me encara, voltando sua atenção para a luta de novo. Não há nenhuma outra reação, mas sei que ele está feliz. É o mesmo modo com que ele pisca para queijo, notas máximas em matemática e maratona de Star Trek.

Não é difícil conviver com o autismo. As pessoas acham que é, porque é um jeito de ser bem diferente do da maioria do mundo. Mas eles são simples, claros e muito precisos, de modo que, se você os aceita, ao invés de apenas querer que ele seja como os outros são, tudo é muito simples.

É por isso que não digo mais nada e me jogo ao lado de Fernando, enquanto ele aperta os botões do controle com tanta rapidez que, se eu olho muito, fico zonza. Mas a violência a minha frente não é muito melhor.

— Fernando gosta de Dafne – ele fala, depois de quase cinco minutos, largando o console no chão.

E eu sorrio. Ele tenta sorrir de volta, de maneira mecânica, o que o faz parecer uma miniatura de Coringa. Mas um Coringa cheio de amor.

— Acabou?

Fernando balança a cabeça duas vezes, num sim também mecânico.

— Vamos andar de bicicleta, então – levanto, batendo as mãos na minha calça jeans.

— Fernando adora andar de bicicletas aos sábados.

— Eu sei. Dafne também adora – sorrio.

Fernando junta os pés e pula do quarto até a sala. É algo que ele só faz em casa, embora na infância fizesse em todos os lugares. Um pequeno cacoete, dos vários que colecionou durante a vida, e que os anos de psicólogos e terapeutas ocupacionais minimizaram. Mesmo assim, quando ele estava entre pessoas que nunca o julgavam, ele mantinha o velho hábito.

Quando chegamos na sala, Karine nos sorri:

— Vejo que você conseguiu tirar meu filho do quarto.

— Fernando vai andar de bicicleta – ele fala, piscando os olhos rapidamente de novo.

— Ah! Então vocês vão precisar de água gelada.

— Fernando pega – ele vai pulando até a cozinha.

— Eu te coloquei em maus lençóis? – Karine sussurra para mim – Eu realmente... – suspirou – não sei porque ainda me espanto com seus pais, mas a verdade é que...

— Meus pais sempre conseguem bater seus próprios recordes. Tô ligada – faço uma careta – Tá tudo bem. Vou precisar fazer umas fotos e posar como uma boa garota que todas vão desejar ser, mas quem liga, não é mesmo? É o sonho da maioria delas. Eu devia agradecer.

Karine me dá um sorriso triste e cruza a sala até chegar próxima de mim. Então me abraça. Meus olhos se enchem de lágrimas no mesmo instante, mas eu me recuso a chorar por isso de novo. Se eu derramasse lágrimas por todas as vezes que minha família passa por cima de uma decisão minha, eu poderia encher a Cantareira sozinha em uma semana.

O abraço dela é tão acolhedor que não consigo me reprimir de tentar me aconchegar melhor nele. É engraçado que ela seja tão calorosa, quando muitas pessoas dizem que a culpa do autismo é uma mãe muito fria, incapaz de acolher seu filho. Não conheço ninguém que ame mais alguém do que Karine ama Fernando. Não consigo enxergar como uma mãe tão calorosa e acolhedora poderia ter culpa em um transtorno que está para além de suas capacidades.

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