TRINTA E OITO

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Pedro me deixa ficar sentada na calçada, porque entende que não consigo entrar na delegacia, se isto puder ser evitado. Há um policial parado poucos metros ao nosso lado, mas ele não nos olha, então quase parece que não está aqui para impedir minha fuga. Como se eu pudesse mesmo fugir. Como se eu não fosse uma Vale, condenada para sempre há um sobrenome.

Quando Olavo chega, meu pai está logo atrás. Meu tio me olha. Meu pai finge que não existo. Eu sei que deveria esperar por isso, e acho que em algum ponto eu sabia, mas dói. Então, desvio o olhar para um ponto no chão, que não consigo enxergar direito porque a rua está escura. Olavo conversa com o policial, enquanto Simas está parado quase a minha frente, as mãos dentro do bolso da calça, tão interessado em alguma coisa na parede atrás de mim quanto estou com o chão.

Pedro segura a minha mão e nenhum de nós fala nada.

Então, a mesma mulher que chegou apressada no hospital, estaciona o carro de qualquer jeito próximo de nós, e sai, antes mesmo do motor desligar totalmente. Ela está descabelada, com um olhar que beira a loucura e encará-la dói – dói porque sei que é culpa minha.

Puxo o ar com força e sinto minha mão se comprimir dentro da mão do meu irmão. Ele está tentando me acalmar. Mas não funciona. Não acho que nada funcionará depois de tudo.

Ela olha pro meu pai, então para Olavo, então para mim e para Pedro, e para mim de novo. Tento sustentar o olhar, mas estou culpada demais para isso. Volto a encarar o ponto no chão. E ela suspira, tão pesada e longamente, que explode tudo dentro de mim.

— Nós precisamos entrar – Olavo diz, voltando da conversa com o policial.

Não quero, então Pedro precisa fazer mais força do que o costume para me tirar do chão. Não peço desculpas por isso. Parece tão insignificante perto de tudo que não há palavras suficientes para expor o que sinto. Acho que parece que não sinto nada. Acho que é por isso que ganhei o apelido de Princesa do Gelo. Mas é mentira. O nada não é tão confuso e estranho como tudo está dentro de mim.

Pela segunda vez, sou levada a uma sala marrom demais. Pedro não pode me seguir, então fica do lado de fora, enquanto estou ao lado de Olavo. Ele é profissional demais, então não segura a minha mão. Respondo as perguntas que me fazem, conto o que aconteceu exatamente, conto que só estava reagindo ao que fizeram com um garoto que não pode reagir. O delegado me olha por um segundo. Não sei o que ele pensa, mas quase vejo uma linha de compreensão passar pelo seu tom castanho. Mas, então, ele balança a cabeça e continua com as perguntas, bem mais frio que antes.

Quando me libera, Karine está na porta. Ela não espera ser chamada, simplesmente passa por mim, os olhos ainda mais loucos do que da outra mãe, e berra com o delegado. Não entendo o que ela diz, porque fiquei parada no vão da porta, os braços caídos ao lado do corpo, olhando para aquela reação. Uma reação parecida com a mãe do garoto, embora bem menos contida.

Uma reação que nunca viria do meu pai.

A dor me atravessa como o tiro que Lilian levou e me encolho, mas antes que caio Pedro passa os braços pela minha cintura e me carrega até o banco mais próximo. Sinto o beijo gelado dele bem nas minhas têmporas, e acho que ele está dizendo alguma coisa, mas não escuto.

Não tenho nada para escutar.

A única voz que queria ouvir não será proferida na minha direção.

A primeira mãe entra na sala, saindo de seu torpor, quase indignada por terem roubado seu lugar de queixa. Há uma briga entre as duas e é necessário outro policial intervir antes que saiam no tapa. A cena toda é tão estranha que Pedro e eu apenas acompanhamos em silêncio, como se duvidássemos que pais pudessem brigar assim, por causa de um filho. Então, encaro Simas, e há uma indignação e condenação pelo descontrole em sua expressão pela cena que se desenrola, que tenho que engolir em seco e desviar o olhar.

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