Emily corre atrás da irmã logo depois, e eu vejo o rastro azul se tornar quase cinzento enquanto ela some do meu campo de visão, sem conseguir fazer nada. Quando penso em ir atrás já é tarde demais, porque as duas podem ter ido para qualquer lugar, porque eu não conheço tão bem essa área da cidade para me aventurar sozinha.
É o fato de pensar que estou sozinha numa rua desconhecida que me faz girar nos meus pés. A rua está deserta, há umas poucas casas, boa parte delas aparentando abandonadas em volta, e muito terreno vazio, cheio de mato, por perto. É um contraste interessante com o dia pontebelense – porque o céu está incrivelmente azul sobre uma rua completamente sem cor, e quase sem vida também.
É estranho e inquietante, e mais estranho ainda pensar que onde moro não tem mais vida do que aqui – só tem muros mais bonitos, janelas bem limpas e carros importados guardados na garagem. Não há casas com telhas de amianto, nem puxadinhos no reboco, nem espaços abandonados lotados de pneu, mato e sabe-se lá mais o quê.
— Tênis legal – alguém fala às minhas costas, me fazendo dar um pulo de susto. O cara está dando um sorriso quase tão amarelo quanto o sol, que fica ainda mais sinistro porque combina com seu cabelo amarelo, que não combina nem um pouco com o tamanho da olheira e rugas que ele tem em volta do rosto – Tá perdida, princesa? – e o jeito que ele aumenta mais o sorriso me deixa tão inquieta que recuo um passo.
Uma péssima decisão, é claro. Porque agora o homem reconheceu meu medo, porque agora eu deixo de ser só uma garota com tênis legal e passo a ser uma presa. Então não me espanto quando ele avança o mesmo passo que eu afastei. Embora meu coração dispare contra meu peito de maneira tão intensa que quase penso que ele vai sair pela boca.
— Tu num é a cunhada da Vênus? – ele cerra os olhos claros pra mim e eu arfo. O homem arqueia a sobrancelha – Quer ajuda com seu GPS? – como eu continuo quieta, as palavras dançando na minha mente enquanto não consigo organiza-la numa frase com sentido, ele continua – Comeram sua língua antes de me encontrar, foi?
— Ãhn – pigarreio, piscando os olhos com força – Só estou procurando alguém.
Merda.
O homem cerra os olhos para mim. Não sei dizer quantos anos ele tem – parece que ele pode não ser muito mais velho do que eu, mas o tanto de rugas, olheiras, o sorriso amarelo e o fato de que seus ossos sejam todos proeminentes, como se ele fosse uma casca ambulante, e não um corpo habitando na pele, contrariam o brilho no olhar dele.
Ele seria bonito, eu concluo. Se.
— E quem é que a princesa tá procurando por essas bandas? Talvez eu possa te ajudar.
Dou mais um passo para trás e, porque sou idiota, tropeço numa pedra. Não chego a cair, mas a cena parece muito divertida para o cara, porque ele consegue sorrir ainda mais, ficando com uma careta tão próxima de um psicopata pronto para estripar sua vítima, que meu estômago embrulha e eu sinto que vou vomitar a qualquer momento.
— Você tem duas escolhas, gata. Tu pode falar por bem. Ou... vai ser muito divertido arrancar de você.
— Lucas – a voz melodiosa soa e me faz dar um outro sobressalto, porque é a última voz que esperava ouvir nesse momento. Giro meu rosto em direção a quem disse e encaro os cabelos cacheados e volumosos de Lavínia, minha companheira de time, caminhando com toda calma até nós dois – Algum problema com minha amiga?
O cara olha de mim para Lavínia, ainda de olhos cerrados, como se duvidasse que eu estivesse ali atrás de Lavínia. E é justamente nesse meio tempo que percebo quem é ele: o ex da Vênus. O cara que ajudou – eu não usaria a palavra responsável, já que houve a decisão de Vênus de aceitar também – minha cunhada a se envolver com vícios de drogas. O cara que estava envolvido com toda a confusão com a irmã de Emily.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...