Gelo – essa é a cor que predomina por todo o condomínio da minha família, o que me faz pensar, enquanto cruzo a portaria, que é a cor é muito simbólica do que são os Vale. Eu odeio morar aqui. Eu odeio ter de voltar aqui depois de ficar tanto tempo na casa acolhedora do meu irmão. Mas, porque ainda sou menor de idade, ainda devo satisfação aos meus pais e ainda não consigo dar adeus totalmente ao que eles representam, depois que dou minha monitoria de História na escola, é para minha casa que vou.
Claro que me arrependo assim que abro a porta de casa.
Não que estivesse acontecendo algo realmente grave, mas só o de sempre – que basicamente consiste em minha irmã-de-porcelana fazendo poses no sofá enquanto seleciona quais são as roupas estupidamente caras que ela vai comprar para si, minha mãe resmungando ao seu lado e meu irmão, um inútil de marca maior, fingindo que trabalha em planilhas que não fazem o menor sentido para ninguém além dele.
— Ah, parece que alguém lembrou que tem casa – é o que meu irmão diz assim que bato a porta.
— Você já viu que notícias horrorosas saíram nos jornais sobre você? – é o que minha mãe pergunta e o que me faz arquear a sobrancelha porque, afinal, a única notícia que eu vi era maravilhosa – Uma única nota sobre sua beleza. Uma lástima.
— Eu ainda estou procurando que beleza – retruca minha irmã.
E eu ainda estou procurando por que ainda estou nessa família, mas aqui estávamos nós, parecendo um monte de personagens mal desenvolvidos numa história muito ruim de um autor muito preguiçoso, incapaz de dar veracidade as características de suas criações. Exceto que somos reais. Tão insuportavelmente reais que nossa imagem virtual, compartilhada desde que me entendo por gente, na sala insossa e gelada da minha casa, é ainda mais dolorida do que qualquer autor meia-boca seria capaz de fazer.
Família – era para ser um negócio bacana, não é? Um lugar para onde você pode correr quando os dias ficam ruins, algo que vai te dar um porto-seguro e uns abraços que vão além do socialmente obrigatório, como nos aniversários, certo? Deus me livrasse de uma família em que todo mundo se desse bem sempre, mas seria pedir demais uma família que as pessoas, ao menos, conseguissem se relacionar?
A porta se abre e meu pai entra, dentro de seu terno impecável de sempre. Seus olhos me encontram por um momento e ele arqueia a sobrancelha.
— Você pode me dizer – ele fala enquanto afrouxa a gravata azul de seda cara – que merda de história é essa entre você e Fernando?
— Fernando? – Patrícia para de olhar o site de compras para me encarar – O maluquinho? Sério que você está mesmo tendo história com um garoto que não sabe nem usar pronome pessoal?
Sinto meu estômago embrulhar com o veneno típico de minha irmã, mas abro meu sorriso mais sarcástico e digo:
— Tenho um irmão que não sabe usar advérbios e uma outra irmã que tem como maior utilidade da vida torrar todos os cartões em roupas que nunca vai usar. Ser amigo de um cara que não sabe falar pronomes do jeito que você acha certo é o menor dos meus problemas, querida.
— DAFNE! – berra meu pai enquanto minha mãe solta um gritinho extremamente enjoativo.
— Francamente! – resmunga Paulo – Por que vocês nos odeia?
Eu adoraria odiar minha família, por pior que essa informação seja para a maioria das pessoas. Odiar todos seria muito mais fácil, porque assim eles não me afetariam tanto. Mas acontece que eu os amava, por mais artificiais que eles fossem. E era tudo isso que causava um nojo tão grande em mim que eu vivia, o tempo todo, com um enjoo sem explicação no canto do meu estômago.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...