TRINTA

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Não consigo dormir.

No conforto do meu quarto, vejo a luz diminuir até ficar quase negra. Acompanho o abajur que meu irmão fez para mim, quando entrei no time de vôlei, com várias jogadas do esporte iluminando enquanto roda. Vejo as formas que ganham a parede. Como os pôsteres de rock ficam ainda mais animalescos àquela luz. Vejo como nem assim a minha jogadora de vôlei preferida consegue ficar estranha ou feia.

Mas não durmo.

A madrugada é silenciosa e torturante, como se os ponteiros dos relógios teimassem em não andar. Não quero fazer nada além de ficar aqui, olhando para a semi-escuridão, ouvindo o silêncio e ficando surda com pensamentos que não quero ter. O quarto fica cada vez mais negro, com a luz amarela bruxuleante ainda mais tremida, mas as horas não passam.

Dá uma da manhã. Uma e dez. Uma e vinte. Uma e trinta. E não há nada de sono. Ou som. Estou tão imersa no meu silêncio que, quando um carro freia abaixo da minha janela, dou um pulo da cama de susto. Meu coração dispara e eu puxo o ar com força. O barulho de tiro, no passado, ecoa na minha mente como se fosse agora, como se fosse eu a garota do cabelo rosa, como se minha vida terminasse no próximo instante.

Mas ainda respiro.

Inspiro.

Expiro.

Tento contar as respirações, para me acalmar. Mas me perco depois da quarenta e meu coração ainda está desesperado. Então, como sei que não vou dormir e como agora meu quarto não só parece escuro, mas assustador, eu me arrasto até a sala, onde a luz é melhor e fica mais distante do quarto do meu irmão.

A casa está ainda mais silenciosa fora da minha bolha, o que me faz pensar como isso é possível. Mas a sala está mais clara e isso acalma meus nervos um pouco. Não estou tremendo mais. E meu coração não parece que vai sair pela boca se eu a abrir.

Eu caminho até a estante, ligando a televisão. Pedro tem uma regra estranha de não deixar nenhum aparelho eletrônico dentro do quarto e isso quase me faz sorrir, porque as esquisitices do meu irmão me lembram que o mundo ainda é o mesmo. Eu é que, depois do que aconteceu mais cedo, nunca mais serei.

Mas tudo bem, não é como se eu gostasse da versão que tinha antes. Tinha consciência de que era ingênua demais, protegida na bolha que meus pais e Pedro construíram para o mundo não me acertar. Sei que, por pior que meus pais fossem, eles queriam me proteger. Do jeito deles, da maneira errada, mas, ainda assim, uma proteção. A proteção certa feita pelo meu irmão não é muito melhor. Ela ainda me deixa alheia à realidade. Ela ainda me faz acreditar em finais felizes e paz mundial.

Nenhuma das coisas jamais vai existir.

Navego pela Netflix e decido colocar minha série-conforto. Talvez não fosse a melhor para o momento, mas, ao menos, consigo dar risada do sarcasmo de Dean e desfocar meu medo da realidade para algo que não vai aparecer na minha casa: demônios. A não ser, claro, se considerar que os Vale podem ser demônios, com seus olhos claros demais e a expressão de quem pode te jogar no inferno com um estalar de dedos – ou, no caso, algumas mãos molhadas de dinheiro.

Deixo meu corpo cair no sofá, mas antes mesmo de afundar no lugar dou um pulo e levo a mão à boca, sufocando o grito. Sinto um chute, bem no meio da barriga. Eu arfo, meus olhos enchendo de lágrimas.

What the feck is that?! – a voz fanha resmunga no mesmo momento que consigo enxergar o ponto azul no meio da escuridão.

— O que você está fazendo aqui?! – é a minha resposta para seja lá qual tenha sido o xingamento de Emily.

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