Milhões de pensamentos passam pela minha cabeça num espaço de tempo tão curto que fico zonza e quase caio. Pedro não diz nada. Pedro está tão silencioso que estou prestes a dizer frases desconexas de desculpas por tudo o que já fiz na vida. Pela vez em que gritei que ele era inútil como meu pai achava. Quando ele tentou me ensinar a andar de bicicleta e eu caí, colocando a culpa nele. Pela vez que contei a ele que a menina que ele gostava tinha se deitado com seu melhor amigo. Pela vez que entrei em depressão infantil e pedi para ele voltar todo fim de semana para casa, por mais que isso o deixaria mais cansado na graduação. Pela vez que quebrei a caixa de maquiagem de bonecas de Patrícia e coloquei a culpa nele, por medo de apanhar. E ele apanhou em silêncio, por medo de me fazer levar uma surra pior.
Nem sempre irmãos se dão bem. Nem sempre bons irmãos se dão bem. Pedro e eu discutimos algumas vezes, mais por meu temperamento do que pelo dele. Acho que, desde que nasci, ele apenas tentou me proteger do que nossa família era, do que nossa família poderia fazer. Demorei a ver isso, demorei a ver que não há alguém no mundo que seria capaz de me amar como meu irmão mais velho. Ele não me deu só meu nome. Ele me deu a segurança de crescer o mais livre que podia dentro dos moldes que temos de seguir. Ele me deu tudo o que podia me dar. Ele me deu a consciência do que era família, antes que eu descobrisse que família tem pouco a ver com o sobrenome que carrego.
Por isso, no silêncio que nos preenche, sinto a culpa se alastrar aos pouquinhos até me tomar por inteira. A culpa tem cor de verde vômito.
Eu quero vomitar.
— Pedro...
Meu irmão levanta a mão e minha garganta se aperta. As lágrimas estão prestes a escorrer pelo rosto, mas tento me manter numa postura digna. Vou precisar dela, se quiser chegar até o fim da conversa. O que facilitaria, claro, se Pedro começasse a falar.
Então, ele fecha os olhos e deixa a cabeça cair, soltando um suspiro logo depois.
— Eu não sei como começar – diz, no seu tom irritado que sempre usa quando se sente fracassado com algo. – Eu não quero ter uma filha.
Balanço a cabeça, mais zonza, porque a última frase não faz o menor sentido.
— Você não quer ter uma filha? – repito.
— Eu não estou pronto para falar de namorados. Ou namoradas. Tanto faz.
Eu rio, porque não consigo evitar, e Pedro pisca para mim, seu cenho se franzindo.
— Não entendi a graça.
— Você nunca entende a graça. É por isso que é engraçado.
Ele entorta a boca e sinto meus ombros relaxarem pela primeira vez em dias. Não faz sentido que toda essa demora tenha sido por causa disso, tenha sido por causa de namorados. Teria acontecido, mesmo se eu tivesse beijado um menino. É ridículo. É tão Pedro. Eu tenho vontade de socá-lo como fazia na infância.
— Bom – Pedro encolhe os ombros –, pelo menos você me poupa o trabalho de te explicar como acontece a gravidez.
— Acho que já explicaram na escola.
— Mas você ainda precisa usar camisinha. – Ele levanta a mão.
— Pedro!
— Eu não tenho a menor ideia de como funciona camisinha feminina – ele continua. – Mas Vênus disse que vai te...
— PEDRO! – falo mais alto, sentindo as bochechas corarem.
Definitivamente, eu não quero ter essa conversa.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...