Capítulo 04 - Salvo pelo gongo

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— Desculpe o atraso, eu dormi e perdi a hora.

Perguntas:

1. Eram sete da noite, quem está dormindo essa hora?

2. Qual a necessidade de falar com o nariz empinado daquele jeito?

3. Qual a necessidade de tanta beleza em uma só pessoa?

— Sabrina! Você está atrasadíssima! — bradou a professora, os olhos quase saltando para fora. — A próxima a se apresentar será você! Espero que esteja com o poema na ponta da língua!

Me senti traído.

Cadê o "não há ninguém como você"?

— Claro, eu saberia recitá-lo até de trás para... — aí, bom, Sabrina me viu.

Fiquei curioso para saber como Sabrina ia fugir de mim dessa vez.

Os olhos fixos nos meus. Surpresa? Só em todo o rosto. Os lábios entreabertos de quem não sabe o que dizer.

— Ah... Fernando... — a professora, com sua voz ligeiramente aguda, entrou em primeiro plano, quebrando minha interação com Sabrina. Olhei para ela simplesmente por reflexo, assim também fez a outra lá, a boxeadora profissional.

Vi a professora fazer cara de quem acabou de lembrar que esqueceu o animalzinho de estimação ao lado de fora da casa. Esperei que ela concluísse a frase que começou, mas estava toda sem jeito.

Quem também estava sem jeito era Sabrina, que olhava para todos os lados e para lado nenhum.

Duas mulheres sem jeito por minha causa. Aquilo era engraçado.

Resolvi facilitar a vida de uma delas. A outra que me aguardasse.

— Bom, acho que não precisa mais de mim — estendi as folhas para a professora.

— Oh, meu querido... — ela estendeu as mãos, repletas de veias, que faziam todo o pó em seu rosto parecer em vão, e pegou os papéis. — Sinto muito, Sabrina já estava encarregada de recitar o poema, mas como ela se atrasou e você é tão bom na leitura quanto ela...

— Não se preocupe. Está tudo bem. — Mais do que bem, pensei.

Salvo pelo gongo.

Mantive os olhos no gongo. Ela estava fingindo arrancar uma cutícula imaginária da unha. Sabrina não ia mais olhar para mim.

— Oh, não — a professora colocou uma mão na testa, arregalando ainda mais seus olhos de farol de fusca. — Com licença meninos. Volto num minuto!

Perfeito.

Ela mal fez menção de sair e eu vi o desespero na cara da Sabrina. Ela estendeu a mão, olhando para a professora como se quisesse implorar "pelo amor de Deus, não vai". Aí, bom, a professora saiu. Ficamos sozinhos.

Agora ela não ia me escapar. Quando viu que não havia jeito de impedir a professora de ir, Sabrina voltou a cutucar a cutícula imaginária. Ah... um gostinho de vitória na boca em constatar que ela se encolheu ao perceber que eu dei dois passos, chegando mais perto...

Faltava um passo só para que estivéssemos perto o suficiente e ela fosse obrigada a olhar em meu rosto.

Hesitante, ela começou a erguer a cabeça quando dei a última passada que nos deixou frente a frente. Abri a boca ao mesmo tempo em que os olhos verdes pousaram em meu rosto.

— E agora... iremos degustar o poema de Fernando Pessoa, recitado pela aluna do segundo ano, Sabrina!

Salva pelo gongo.

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