Capítulo 16 - Vamos ver o sol nascer quadra...

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— É... nós... — Sabrina começou, me pedindo socorro com os olhos. — A gente queria... — ela soltou o carrinho e segurou meu braço, apertando as unhas de leve como que pedindo para eu agir.

Eu ia agir sim, mas não do jeito que ela queria. A funcionária não queria diálogo, ela já havia formado sua opinião sobre nós quando nos chamou de "trombadinhas". Além de que, ela estava com o celular na mão, pronto para discar.

Tranquilamente, entrelacei os dedos de Sabrina nos meus e comecei a andar, levando ela comigo.

— Mas o que... — ouvi ela reclamar, enquanto apressava os passos. E, para confirmar minhas suspeitas, ela disse: — Paulo, aqui no fundo da loja, rápido.

— Ah, meu Deus, Fernando, ela chamou alguém! — Sabrina alternava o olhar para frente e para trás.

— Corre, Sabrina! — depois disso, rolou um velozes e furiosos.

Felizmente, aquela loja era grande o suficiente para parecer um labirinto: fácil de se perder, fácil de se esconder de uma funcionária unicórnea.

Uma vez perto da saída, começamos a agir naturalmente. Estendi o braço cavalheiramente para Sabrina e passamos tranquilamente por outros funcionários.

— Olha, querida, que bela obra de arte — fiz voz de inteligente, apontado para uma pintura a óleo de um bebê no alto da parede.

— Interessantíssimo, querido — e colocou a mão no queixo. — Veja aquele — ela apontou para um quadro largo, horizontal. A pintura, na cor cinza, retratava uma criança descalça na areia, frente a imensidão do mar. Achei meio deprimente. — Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?

Sabrina estava citando ninguém mais ninguém menos que Fernando Pessoa. Mal sabendo ela que se tratava do meu autor favorito, muito menos da história que originou minha existência — e mais, na escolha do meu nome.

Olhei para ela, que encarava o quadro fingindo uma postura intelectual. Eu ia fazer um comentário sobre como eu gostava de ouvi-la recitar aquele autor, mas então...

— Olha lá a dupla de marginais. Devem estar com os bolsos cheios, pega eles!

Lá vinha a Unicórnea saltitante com um troglodita do lado. Mas que dramáticos. Para que tudo isso? Éramos só dois adolescentes.

Infelizmente para eles, já estávamos perto da saída. Só precisamos correr mais um pouco. Sabrina estava se acabando de tanto rir.

— Nós vamos ver o sol nascer quadrado, Fernando! — disse ela, gargalhando.

— Só se nos pegarem!

Quando chegamos na esquina, ela soltou minha mão e diminuiu o ritmo.

— Ah, eu cansei, cansei — disse ofegante, se apoiando na parede.

Me aproximei e lhe dei apoio, segurando sua cintura. Ela colocou a mão no meu peito e se concentrou em recobrar o ritmo da respiração.

O elástico que antes prendia um rabo de cavalo alto havia escorregado para o meio dos cabelos. Enquanto Sabrina tomava fôlego, terminei de deslizá-lo e enfiei no bolso, antes que ela me pedisse para colocá-lo no pulso (ah, sim, porque era hilário ver o namorado dela usando um elástico colorido no braço).

Do outro lado da rua havia uma praça, foi onde deixei Sabrina descansando em um dos bancos de madeira enquanto fui comprar água.

Depois de tomar sua própria água e metade da minha, Sabrina já estava pronta para outra.

— Olha! — ela apontou, eufórica, mal tirando a garrafa da boca. — Vamos dar uma olhada!

Era outra loja. Levantei uma sobrancelha e ela sabia que era 'não'.

— Ah, vamos, lá! Qual é?

— Sabrina...

Ela juntou as mãos perto do queixo e me olhou com enormes olhos pidões. Por um momento pensei que quem estava ali era o gato de botas não a minha namorada.

— Por favor, Fernando? — fez essa cara, pronto. O mundo era dela.

Entramos na bendita loja. Não era como a outra, não tinha carrinhos, roupas cafonas, nem unicórnios. Bom, tinham unicórnios, mas de porcelana, e eram bem pequenos.

Achei o lugar até mais ou menos interessante. Tinham uma infinidade de livros infantis, já era um bom começo. Nunca é cedo demais para incentivar a leitura. Meu filho, por exemplo, ia aprender a ler no máximo aos dois meses de vida.

Nos cinco minutos seguintes, eu já tinha perdido a pequena exploradora consumista de vista. A loja possuía pouco espaço e gente demais. Felizmente, só havia uma pessoa de cabelo rosa então foi fácil reencontrá-la.

De longe, notei que ela segurava algo pequeno, olhando encantada. Ao me aproximar, vi que era uma miniatura de carrinho de bebê, todo de um cristal azul transparente. Os olhos dela cintilavam.

— Você quer?

Sabrina olhou para mim. Seus olhos sorridentes diziam que sim.

— É azul — lembrei.

— Nossa filha não tem preconceito com cores.

— Nosso filho — corrigi.

Ela revirou os olhos.

— É uma menina, Fernando. Eu sei. As mães sempre sabem.

— Esse papo não cola. Você não sabe de nada, Sabrina. É um menino — coloquei a mão na barriga dela. — Não é, filho? Fala pra essa chata que você é muito homem, fala.

Sabrina ainda tentou disfarçar, mas não conseguiu evitar de abrir um sorriso, o mais puro sorriso. Ela sempre se divertia ao me ver falar com o bebê, na verdade, com a barriga dela.

— Volto logo, não sai daqui. — Pff, como se Sabrina me obedecesse em qualquer coisa que fosse.

Peguei o cristal azul da mão dela e fui até o caixa.

— É uma bela lembrança — a garota do caixa disse, simpática. — Que bom gosto.

— Obrigado.

Ela colocou os longos e lisos cabelos pretos de lado, evidentemente jogando charme.

— É para o seu sobrinho? — chutou, sorrindo.

— Para o meu filho.

Ela ficou surpresa. Desapontada é a palavra certa. Só sei que seu sorriso se desvaneceu.

Sorri da expressão dela e, quase automaticamente, virei para olhar Sabrina. Quando a vi, senti o planeta interromper a rotação por cerca de três segundos. Foi a minha vez de perder o sorriso.

Sabrina estava com uma mão na barriga, tateando com a outra para não cair. Seu rosto era de puro horror enquanto olhava para o sangue que descia pelas pernas.

Como nascem as estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora