Capítulo 05 - Fernando em Pessoa

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Eu nunca fui de gostar de poemas. Tinha preferência por livros de ficção científica, suspense e distopia, mas mesmo fora desses gêneros, todo tipo de livro me despertava interesse. Menos os de poesia.

Foi na quinta série que isso se mostrou um problema. O professor de português acordou em bela manhã de segunda-feira e decidiu que seriamos avaliados por meio de um caderno de poesias, com poemas escritos pelos alunos. Aquele doente.

Eu era péssimo naquilo. Meu estúpido caderno de poesia era cheio de riscos de caneta vermelha, correções grotescas e agressivas de um professor que me achava burro. Peguei uma aversão tão grande por ele que passei a chegar atrasado só para perder suas aulas.

Até aí, tudo bem. O verdadeiro problema surgiu quando minha mãe recebeu o meu boletim. Digamos que ela nunca foi lá a mãe mais paciente do mundo. Chegou em casa naquele dia e não quis saber. Não quis me ouvir. Eu não tentei explicar que tinha dificuldades com a disciplina, porque, afinal, ela não me perguntou.

— Você vai para a escola todos os dias. Como pode estar com uma nota péssima dessa? — ela balançou o papel no ar, perto do meu rosto — Quatro, Fernando?! O que é que você anda fazendo na escola, afinal?

Fiquei calado. Apenas ouvi tudo o que ela tinha para falar, e, quando terminou, fui para o quarto. Ela me deixou de castigo sem videogame. Nem jogar bola com Leandro eu podia. Adiantou? Não adiantou. Minha nota caiu ainda mais.

Quando novamente chegou o dia de entregar o caderno, eu coloquei fogo nele, mostrei o caderno tostado para o professor e disse que tinha havido um incêndio em minha casa.

Ele não acreditou, levou ao conhecimento da direção e isso acabou com uma ligação para a minha mãe, bem no horário de trabalho dela.

Naquele momento, sentado de frente para a mulher de olhos de mel derretido pelo fogo da fúria, eu soube que ia apanhar.

— Deixa, Diana, que eu converso com o nosso filho. — Meu pai era a pessoa mais paciente que eu conhecia.

Ela dirigiu um longo e sinistro olhar para ele, como se estivesse lhe dando uma chance de voltar atrás no que disse. Mas o meu pai era lerdo no que dizia respeito a interpretar os sinais da minha mãe. Então ela respirou ruidosamente, colocou as mãos no colo para dar impulso e se levantou. Não ficou nada feliz em deixar meu pai resolver aquilo, mas saiu da sala nos deixando a sós.

Com isso, ele sentou-se de frente para mim, seus olhos castanhos fixos em meu rosto, e questionou:

— Qual é o problema, Fernando?

— O professor me obriga a escrever poemas. Por que eu tenho que fazer uma coisa que detesto? — Ora, ora, se não é a inocência de um menino de doze anos.

Ele refletiu por um momento antes de se levantar e ir até a estante. Quando retornou com um livro de capa dura azul, começou uma ladainha besta sobre eu ter que aprender a gostar de uma coisa antes de poder praticá-la.

Em resumo, foi nesse dia que eu ganhei o meu primeiro livro de poesias. Foi também o dia em que descobri a história por trás de mim mesmo, conheci o cara que inspirou a escolha do meu nome: Fernando Pessoa.

— Sua mãe era fascinada pelas obras dele — finalizou meu pai, com saudosismo na voz, ao contar que aquele livro que estava me entregando foi o objeto de aproximação entre minha mãe e ele, do tempo em que pesquisas escolares eram feitas em bibliotecas públicas.

Basicamente, o cara foi responsável não só pela escolha do meu nome, mas também por eu ter nascido.

Dois finais possíveis para essa breve história:

1. Segurei o livro entre as mãos, emocionado com a linda história de amor dos meus pais, comecei a lê-lo ferozmente, e virei um poeta brilhante.

2. Olhei do meu pai para o livro com cara de "mas que merda". Deixei o livro jogado na estante do meu quarto com zero intenção de ler. Mas de tanto ouvir meu pai perguntar como ia a leitura comecei a rastejar pelas páginas.

Dica: a opção "1" está errada.

No fim, eu consegui a nota para a matéria, mas isso não é relevante. O fato importante aqui é que, de tanto ser forçado a ler suas obras, Fernando Pessoa virou o meu autor favorito.

Agora eu estava ali, escorado na parede, braços cruzados, a observar a menina de cabelo rosa — a que eu um dia acreditei gostar, depois acreditei odiar, mas agora morria de curiosidade/vontade de falar com ela — recitar, com a voz mais límpida que eu já ouvi, o autor que literalmente fazia parte da minha vida.

"Chuva Oblíqua" era o título do poema que ela estava recitando. Era um texto intenso e extenso.

Como eu estava mais para o meio da plateia (em pé no corredor, já que alguém tinha roubado meu lugar), o barulho de conversas no fundo atrapalhava um pouco. Mas eu consegui captar tudo. Ela passava segurança, olhando diretamente para o público de uma forma tão expressiva que era impossível não se envolver nas palavras que saiam daquela boca.

Eu a observei com atenção em todo momento, em nenhum ela olhou para mim. Claro, ela não sabia onde eu estava. Quando terminou, no entanto, Sabrina falou o nome do autor. E aí, bem aí, ela olhou para mim.

— Fernan... Fernando Pessoa.

Não. Aquela dificuldade em pronunciar o nome não podia ter sido só dentro da minha cabeça.

Aplausos do meio para frente, o fundão nunca sabe o que está acontecendo mesmo. Agradecimentos. Próxima pessoa. Eu não estava ouvindo mais nada. Meu foco era continuar correndo para os bastidores.

De hoje, ela não passava.

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