Capítulo 58 - Não queremos mais fi...

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Tome minha mente e tome minha dor

Como uma garrafa vazia que apanha a chuva

E cure, cure

Me cure

Tome meu coração e pegue minha mão

Como um mar que carrega as areias sujas

E cure, cure

Me cure

A música tocava timidamente no som do carro, tão baixo que quase era superada pelo barulho do motor.

As lágrimas eram geladas, assim como o tempo lá fora. Inverno era a estação favorita dele, porque podia usar os moletons quentes, andar de meia pela casa e levar o cobertor para o sofá enquanto assistia televisão.

A dor aguda, como uma agulha fina atravessando o coração, me fez querer parar o carro no acostamento por achar que não ia conseguir suportar.

Balancei a cabeça, obrigando os meus olhos a focarem na estrada. Eu tinha que aguentar, não dava mais para ser tão covarde.

O objeto azul pendurado no espelho retrovisor balançou, fazendo minha atenção se deter nele por um momento.

O carrinho de bebê de cristal foi o primeiro presente que ele ganhou do pai quando ainda estava em minha barriga. E foi o último objeto que peguei quando fui embora.

Ou melhor, quando eu fugi, feito covarde.

Eu não tive coragem de encarar os meus demônios, então me acovardei e peguei o caminho mais fácil: fuga. A fuga sempre é fácil.

Entretanto, partir não foi uma decisão pensada com calma. Muito pelo contrário.

Eu só sentia que a única coisa que me prendia a vida havia sido arrancada de mim, então a sensação de que estava sozinha no mundo começou a me enlouquecer.

Fernando não estava comigo e não sei onde estava. Fisicamente, ficava sentado no chão do quarto de Eduardo, encostado na lateral da cama com a cabeça reclinada no colchão, olhando para o teto. Mas ele não estava ali. Se fechou para o mundo. Não se alimentava, não falava, muito menos me olhava.

De madrugada, quando eu gritava de dor, ele aparecia, se deitava na cama comigo e me abraçava forte, tentando segurar o meu mundo. Mas quem segurava o mundo dele?

Dormíamos chorando e eu sentia que ele estava comigo, então ia conseguir sobreviver. Mas no dia seguinte eu acordava e ele nunca estava lá.

Os calmantes estavam diminuindo seus efeitos e logo eu teria que tomar doses mais altas. Isso seria prejudicial para a gravidez, mas eu não conseguia parar, pois o sono era o único lugar em que eu não estava desesperada em um tormento infernal. Além do mais, eu preferia estar dopada naqueles pesadelos recorrentes em que eu me afogava no mar profundo, tentando nadar mil quilômetros acima, do que estar acordada no pesadelo da realidade em que meu filho estava morto.

Bastava abrir os olhos pela manhã para eu ser arrastada para o inferno. Assim os dias começavam do mesmo jeito: eu acordava soluçando, lutando para abafar o som dos meus berros com o travesseiro.

Eu não queria que Fernando tivesse que se preocupar com a minha dor, porque sempre que tentava ser o meu apoio, ele ficava ainda mais destroçado. Acontece que quando eu tentava ser o seu suporte, ele não permitia a minha aproximação emocional.

Não conseguíamos apoiar um ao outro, como era suposto que fizéssemos. Longe disso. Minha presença parecia deixá-lo ainda pior. E parecia que não ia melhorar, já estávamos assim há um mês.

Como nascem as estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora