XIII

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Um barulho muito alto na tevê me traz de volta à realidade e eu salto do sofá, me afasto de Henry. E do beijo. Toco meus lábios automaticamente, como se para saber se eles ainda estão inteiros depois do beijo, e vejo Henry fazendo o mesmo disfarçadamente.

Coço a garganta.

— É...

Henry me olha e sorri para mim. Pode ser causado pelo frio, mas vejo um rubor em suas bochechas que não estava ali antes.

— Gostou da experiência?

— O quê? — Me espanto.

Ele está falando do beijo? Como uma experiência? Como algo substancial e... quem fala assim de um beijo? Jesus Cristo! ...

— Da cena — esclarece.

— Ah. — Me acalmo. — Gostei. Foi, hum, curta, mas eu gostei.

Henry se ajeita no sofá, sentando-se na posição correta, com os pés no chão.

— Vamos fazer outras. Vamos sair na rua e roubar uma vespa — sugere ele, e eu rio.

— Quem dera!

Meu corpo está voltando ao estado normal e meu coração não bate mais a mil por hora, então consigo sair do lugar sem sentir as pernas tremendo, e me sento no sofá ao lado de Henry. Despretensiosamente.

Adoro o momento pré e pós primeiro beijo com alguém. Às vezes, é melhor do que o beijo em si. O aceleramento do coração antes de o beijo acontecer, e a incerteza se vai mesmo ser bom, se vai de fato acontecer... E o pós, quando tudo já aconteceu, e nós ficamos com a sensação de estarmos andando sobre nuvens macias e não tão seguras. Meus pés estão gelados, como se eu pudesse pular de uma nuvem para a outra e cair lá de cima em um segundo, mas aí... olho para Henry e sinto a segurança da nuvem sob meus pés novamente. Essa sensação de montanha-russa perdura por tempo indeterminado, varia de beijo para beijo.

Agora, ainda me sinto andando em nuvens.

++

Continuamos assistindo o filme até o final, comentando as cenas e ocasionalmente imitando as falas com as vozes alteradas – eu, Gregory Peck, Henry, Audrey Hepburn.

Henry me contou sobre a primeira vez em que assistiu ao filme e sobre a época em que só assistia aos clássicos, porque enfiou na cabeça que deveria conhecer todo filme já feito na história do cinema antes de se tornar um bom ator.

— Eu queria, e ainda quero, claro, ser cada dia melhor no meu trabalho, mas naquela época eu estava obcecado — confessou. – Eu queria passar noite e dia assistindo aos filmes e decorando roteiros. Tinha quinze anos. Decorei alguns até hoje, como Roman Holiday, Rear Window, It Happened One Night... mas deixei essa mania de lado. Não era saudável.

Não lhe contei sobre como eu fazia o mesmo, ainda nos dias de hoje... não sobre decorar filmes e roteiros para me tornar uma boa atriz, mas só porque eu queria mesmo. O que era pior, já que eu não tinha um objetivo.

Eu contei mais a Henry sobre o livro que estou escrevendo e lhe mostrei o primeiro conto que escrevi, de apenas duas páginas para uma tarefa escolar, aos onze anos, sobre um passarinho apaixonado. Era um conto louco e adorável, além de engraçadíssimo. Eu não sabia o que pensava aos onze anos de idade. Henry pediu para guardar o conto consigo, e eu, relutante, deixei. Já sabia aquelas palavras de cor, de tanto que reli por divertimento. Henry o guardou na mochila azul.

Outra coisa que adoro em momentos pós-beijo: a forma como o olhar muda.

Pequenas diferenças no modo como os olhos caem sempre em cima um do outro. Henry e eu só trocamos aquele beijo, e se ele fosse apagado da história, não haveria diferença na nossa forma de tratamento um com o outro. Não haveria diferença na superfície, está tudo exatamente igual. Mas nos olhares consigo perceber que há mudança. E é essa a sensação gostosa que procuro num pós-beijo: saber que há mudanças sutis talvez percebidas apenas por quem viveu o beijo.

Henry Smythe I & IIOnde histórias criam vida. Descubra agora