XV

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Aparentemente cafuné é a melhor coisa do mundo, e acompanhado da voz suave e baixa de Henry lendo o primeiro capítulo de Mau Começo – com aquela voz do narrador ditando as tragédias que estão prestes a acontecer com as crianças – é a receita perfeita para cair no sono. Em poucos minutos eu já estava piscando longamente, não entendendo muito bem as frases ditas por ele e começando a confundir realidade com sonhos.

É engraçado quando estamos nessa fase 50% dormindo, 50% acordados. Parece que vamos mergulhando no mundo do sonho lentamente, atravessando a passagem, e, de repente, bum! Estamos 100% sonhando.

Caí no sono desse jeito, confundindo sonho com realidade, e acho que, justamente por isso, sonhei com Henry. Não pareceu o mais realista dos sonhos, pois estávamos em um lugar que não conheço, caminhando tranquilamente pela rua, quando de repente ele apontou um ponto no caminho e saiu correndo. Olhei para o ponto e vi diversas pessoas vestidas de preto, tentando se esconder atrás de um hidrante. As pessoas carregavam máquinas fotográficas nas mãos, mas eram aquelas máquinas antigas, nem digitais eram. E aí, de uma hora para outra eu e Henry já estávamos em outro lugar e alguém falava, uma voz que não era nem a minha nem a dele. Era distante, e aí eu fui fazendo a viagem de volta, saindo do sonho, ultrapassando a passagem rápido demais, como a Alice caindo na toca do coelho, só que eu caí na realidade.

E na realidade eu estava deitada no chão do depósito da loja, Henry deitado com a cabeça na minha barriga e Dimitri em pé na porta, perguntando:

— Sabrina? O que diabos é isso aqui?!

Me situo e levanto muito lentamente. Henry, por outro lado, estava de pé em um milissegundo, os olhos arregalados e o cabelo espantado por causa da posição em que sua cabeça estava apoiada em mim.

— Eu achei que fosse Karen... já vi ela dormindo aí, mas... — Dimi explica, e olha para Henry, que engole em seco sem dizer nada.

Ergo o queixo para Dimi, montando minha cena cínica, do tipo: o quê? Estava tudo normal aqui, nada fora do comum, vamos seguir nosso dia?

— Eu cheguei aqui muito cedo, aí não achei que fosse bom atender ninguém desse jeito, morrendo de sono. Então... — jogo os ombros para cima e sorrio sem mostrar os dentes. Passo por Dimi em direção ao salão da loja e sento-me no meu lugar, atrás do computador. Abro o primeiro livro que aparece em meu campo de visão e começo a ler superficialmente.

Fugir de confrontos sempre foi meu ponto forte.

Henry aparece ao meu lado e me olha com uma expressão no rosto que não me diz exatamente se ele está com medo, vergonha, arrependimento ou sequer feliz. Não sei o que está acontecendo no rosto dele. Pode ser só o sono, também. Deus, eu devo estar linda agora.

— Sabrina... — a voz de Henry vem lá do depósito — você pode vir aqui, por favor? Tem um... — ele coça a garganta — negócio aqui pra você ver.

Eu me levanto, e quando passo por Henry, ele segura meu braço e sussurra em meu ouvido:

— Ui, vai levar bronca, Sabrina...

Ignoro o arrepio que percorre minha espinha ao ouvir a voz de Henry tão próxima e baixa assim, e tapo o sorrisinho que escapa em meus lábios.

Afinal, acho que Henry não está nem envergonhado nem com medo. Ele está achando isso tudo o maior divertimento.

— Oi, Dimi. Chegou aqui há muito tempo? Aliás, nem vi que horas são — sorrio e procuro um relógio pendurado na parede. Não olho diretamente para Dimitri.

— São nove horas. — Ele responde, e em seguida segura meus ombros e me olha diretamente nos olhos. Não tinha nem como eu desviar. — O que você está fazendo, Sabrina?

Henry Smythe I & IIOnde histórias criam vida. Descubra agora