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Dulce viu seu reflexo no espelho do corredor conforme eles passaram pela porta da frente. Ela notou, ligeiramente aflita, as bochechas coradas e os cachos esvoaçados pelo vento. Não era de admirar que Christopher a olhasse de forma estranha. Ela devia ser a mulher mais esculhambada com quem ele já tinha sido visto. Pensando em correr lá para cima e se arrumar, ela foi impedida pela tia, que a cumprimentou no corredor, novamente agitada.

— Dulce, graças a Deus. — Ela abaixou o tom de voz. — Lorde Shale está aqui com o filho. Não estou acostumada a ter visitantes nobres e não conseguia pensar em uma forma de entretê-los. — Talvez,
vendo novamente sua intenção de sair correndo, a tia rapidamente segurou seu casaco, apertando-o nos braços. — Você não pode deixá-los em minha sala. Vá! — Ela foi levando a sobrinha pelo corredor,
afastando-a da porta. — Entre. Eles estão aqui por sua causa, não por mim, e lady Mercy já cantou várias canções na espineta.

— Bom. Deixe que lady Mercy entretenha os Shale.

— Mas, minha querida Dulce, as canções dela não são muito elegantes para uma moça. Alguém a ensinou as letras erradas, só por malícia. Não me atrevi a dizer nada, mas lorde Shale está vermelho como um
pimentão. Além disso, embora a mocinha seja bem despachada e não possa ser descrita como uma violeta acanhada, receio que ela seja jovem demais para ser tão “dada”. Ela me diz que só tem doze anos, Dulce. No
entanto, insistiu em sentar na espineta e nada a dissuadiu.

— Nem posso imaginar.

— Mas certamente ela não é tão “dada”, ainda tão jovem.

— Creio que sua criação tenha sido um tanto incomum, tia Lizzie. Ela tem pouquíssima supervisão.

— Então, por que você não se incumbe dela — Christopher interrompeu. — Gosta de estar na incumbência, senhorita Saviñon. Dando ordens às
pessoas.

— Não gosto, não.

— Nunca conheci alguém que gostasse tanto de impor as regras, madame. A senhorita faz isso muito bem. — Então ele entrou marchando na cozinha para procurar suas calças remendadas.

Pisando duro, ela entrou na sala. Lorde Shale levantou-se para cumprimentá-la e o filho acabou fazendo o mesmo. Para o horror de Dulce, a senhora Flick ainda estava lá, estendendo sua visita matinal
provavelmente para angariar o máximo possível de fofoca. A chegada dos Shale teria sido um bônus. Seus olhinhos se fixaram em Dulce do outro lado da sala.

— Então aí está você, finalmente. Sua tia disse que você tinha saído para caminhar. Nesse clima. E sozinha. Realmente, vocês, garotas jovens, são tão negligentes com a saúde. Sou uma defensora do exercício dentro
de casa. Ao ar livre, a tendência é se esforçar demais. Dentro de casa, não há perigo de se engasgar com insetos, nem de pegar sol demais.

— Acredito que o ar fresco melhora a saúde, madame — respondeu Dulce. — No campo, pego o máximo que posso.

Embora ela sorrisse para a senhora Flick, o gesto não foi retribuído.

Até a roupa da mulher mostrava rancor — eram totalmente abotoadas e quase sem adorno.

— Os benefícios são evidentes, senhorita Saviñon. A senhorita está o retrato da boa saúde — Lorde Shale garantiu. — Sempre digo que uma rápida caminhada pode ser muito benéfica. Trenton adora caminhar. Não é, Trenton?

O filho, que já despencara de volta no sofá, examinava seu relógio de bolso. Ninguém jamais pareceu uma pessoa menos inclinada a caminhar.

— E o que o traz a Sydney Dovedale tão subitamente? — Perguntou a senhora Flick, gritando para ser ouvida acima da mão pesada de lady Mercy no instrumento.

— Estou visitando a minha tia pelo Natal — respondeu Dulce, indo até a espineta. — Eu tinha ouvido dizer que ela andava meio adoentada. Vim na esperança de animá-la.

A senhora Flick fez um som de bufada, como se a presença de Dulce para agradar alguém fosse ridícula. — Foi só um pequeno resfriado e agora ela já se recuperou bem. Graças ao meu remédio. Ouso dizer que ela poderia ter ficado muito doente se não tivesse me dado ouvidos quanto à banha de ganso e à pata de bezerro. Tenho certeza de que não havia necessidade de que você atravessasse o país.

Quando a tia de Dulce adentrou a sala, atrás dela, a senhora Flick elevou um pouquinho o tom de voz. — Não é verdade, Eliza, que meu remédio foi tudo de que você precisou?

— Ah, sim, foi mesmo.

Dulce se debruçou acima da espineta e fechou a partitura que lady Mercy estava acompanhando. — Creio que Molly Robbins estava querendo levá-la para conhecer a vila, milady. Agora, a chuva parou e
vocês podem aproveitar.

— Ela está costurando na cozinha.

— Mas tenho certeza de que agora ela já acabou. Podem ir.

— Eu não quero. Ela é uma garota chata e comum.

Dulce cerrou os dentes, dando outro sorriso. — Mas você quer ir à festa esta noite, não?

Chantagem a criança entendia. Ela desceu da banqueta, cumprimentou os convidados e deixou que Dulce a levasse para fora da sala.

— E que história é essa que ouvi sobre um homem serviçal? — Exclamou a senhora Flick com sua boquinha contornada por pequenas rugas de uma vida de decepção quanto ao comportamento alheio. Quando ela fechava a boca era como se um cadarço de bolsa feminino tivesse sido puxado.

Todos olharam para Dulce quando ela se sentou ao lado da tia. — Ah, é algo bem novo em meio às jovens da cidade, madame.

Os olhos da senhora Flick se apertaram,
transformando-se em filetes finos.

— Eles são muito úteis para carregar caixas e erguer coisas pesadas. Para abrir portas emperradas e garrafas. Esse tipo de coisa. Muito bom para uma mulher que carece de um marido. — Dulce estava mergulhando em sua história. — Ouvi dizer que a princesa Sophie tem um. Um criado particular, é o termo correto.

Todos os olhos ainda estavam sobre ela. O olhar da senhora Flick se arregalou apenas ligeiramente. — Um criado particular? Nunca ouvi falar
nisso.

— Posso lhe assegurar, madame, eles estão na última moda. Na cidade.

Houve uma pausa. Tia Lizzie assoou o nariz em seu lenço de renda e lorde Shale deu uma batidinha com a bengala no sapato. Em sua gaiola, o papagaio do capitão deu um grasnido baixinho. — Oooh... Smallwick! Small...wick!

Dulce olhou para baixo, para a saia, escondendo um sorriso.

— Como tem passado sem Mary Wills? — Perguntou a senhora Flick ao virar sua atenção crítica para tia Lizzie. — Não sei por que você abriu mão dela, e agora você tem convidados. Você vai amaldiçoar o dia em que a deixou partir. Convidados fazem uma bagunça terrível, principalmente quando chegam a uma casa sem avisar e trazem pessoinhas a tiracolo.

Tia Lizzie engoliu temerosa, com os dedos remexendo os babados de sua saia.
— Se Mary comia demais — prosseguiu a outra mulher —, você poderia ter arranjado uma garota de menos apetite, e bem menos peso, lá no orfanato. Uma garota mais jovem, grata por um teto sobre sua cabeça, que só consome um pouquinho de ar. Mary Wills tinha uma
tendência a preencher os espaços, e esta é uma casa pequena, com cômodos estreitos.

— Mas até que estou me saindo bem sem empregada — arriscou tia Lizzie. — Principalmente agora que tenho Dulce aqui, para ajudar.

A senhora Flick deu um solavanco para trás, com a cabeça. — Posso imaginar quanta ajuda ela lhe dá. De um lado para o outro, em qualquer clima. Como a maioria das jovens, nunca está presente quando é
necessária.

Lorde Shale limpou a garganta. — Se a chuva parou, senhorita Saviñon, e se a senhorita não estiver muito cansada de sua caminhada, tenho certeza de que Trenton gostaria muito de dar uma volta no jardim de
sua tia.

Dos males, o menor. Pelo menos, ela pegaria um ar fresco. Então, ela forçou um sorriso mais animado e deixou que o rapaz desagradável a conduzisse pelas portas duplas rumo ao pequeno jardim atrás da casinha.

Ela sabia que a senhora Flick estava de olho neles através dos vidros góticos da porta. Sem dúvida, ela já começara a preparar a próxima hora de fofoca para contar mais tarde às pessoas da vila. Ainda bem que
Christopher não tinha se juntado a eles na sala, pois a senhora Flick o teria reconhecido imediatamente, e ela não era do tipo que engrena uma encenação.

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OH MY GOSH! 1k de visualização é d+. Obrigada a vocês meus queridos leitores.

E sim, se eu pudesse tirava essa senhora Flick da casa da tia Lizzie no bicuda. Mulherzinha rabugenta, por Deus.

MADRUGADAS DE DESEJO - Adaptada | VondyOnde histórias criam vida. Descubra agora