Capítulo 4

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Desde a chegada do Monge Choroso, já haviam se passado algumas semanas. Aos poucos cada vez mais pessoas descobriam a presença do "intruso" no navio, muitas discordando da minha decisão. Merlin e Morgana eram uns dos únicos que apoiaram minha decisão. E Percival, claro. A amizade entre ele e o Monge crescia a cada vez mais, e era algo lindo de se ver. O garoto sempre quis ter um guerreiro em quem se espelhar, e agora ele tinha.

A ansiedade consumia à todos no navio. Os Paladinos conquistando cada vez mais terras e a aliança entre dois reis poderosíssimos tiravam o sono de todos. Passávamos noites nos reunindo e criando planos, e precisávamos parar com frequência para buscar mantimentos. Eu ainda não tinha me acostumado com essa vida no mar.

Seria reconfortante ter Pym ao meu lado nessa situação, se ela não estivesse tão apreensiva com o novo hóspede. E eu entendia o lado dela. Arthur parecia entretido com diversos assuntos relacionados ao navio, e eu apreciava ter alguém que soubesse me explicar tudo isso de um jeito mais fácil. Mas uma situação, do meu primeiro treino com o Monge, não saía de forma alguma da minha cabeça.

Lutávamos como dois lobos de uma mesma alcateia, e parecíamos estar na mais absoluta sintonia. Ele se movia rápido, com movimentos precisos, que logo me deixavam perdida. Depois de certo tempo, ele conseguiu me imobilizar. Nossos corpos já estavam quase inteiramente colados, e seu braço me trazia para perto do seu peito. Inclinei a cabeça e encarei seu rosto, seus olhos brilhantes, esperando o que viria em seguida.

- Você ataca bem, mas fica perdida quando alguém vem pelas suas costas. Precisa ter mais consciência dos inimigos por perto. - ele disse, em voz baixa.

Ele me soltou rápido, mas ainda demorei naquela posição, e ele se demorou também. É, eu tinha gostado do seu toque.

Talvez eu estivesse delirando por gostar do toque de alguém que eu tinha acabado de conhecer. Provavelmente era carência, já que minha relação com Arthur parecia esfriar mais a cada dia: agora ele estava focado em uns assuntos, e eu em outros. Ele passava o dia conversando com Guinevere e a tripulação, e eu me aproximava do meu pai - que finalmente conseguia chamar, nem que fosse internamente, de pai - e Morgana. Quando eu e Arthur nos encontrávamos à noite, já falávamos mais das necessidades da tripulação do que da nossa própria vida.

Estava debruçada sobre algumas madeiras no barco, observando o oceano, quando senti alguém chegar ao meu lado.

- Hans e Lia querem se encontrar com você na sala de reuniões. - a voz, que percebi ser de Arthur, disse.

- Eles podem esperar? - perguntei.

- Acredito que sim. Você está bem?

Ele passou o seu braço pelas minhas costas. Suspirei e me virei para vê-lo.

- Bom, foram vários choques chegando aqui. Um atrás do outro. Acho que eu só estou assimilando e esperando que tudo dê certo no fim do dia.

- Eu entendo... perfeitamente. Você quer companhia, ou se sente melhor só?

- Quero que você fique aqui. - disse, pegando sua mão - Já fiquei sozinha por bastante tempo.

Voltamos o olhar ao oceano. Ficamos ali por um bom tempo, até ele trazer o assunto indesejável à tona.

- Você disse que uma semana depois o dispensaria. Que era só o tempo dele se curar. Mas ele já está bem melhor e continua aqui. - Arthur disse, sério.

- Ele mal tem para onde ir e estamos em pleno oceano. - disse, um pouco impaciente.

- Ele tentou me matar junto com muitos outros, disso eu não esqueci. Ficamos mais de uma semana atracados no porto, tempo suficiente para ele se curar. O que o prende aqui? Qual é o seu objetivo com isso?

Era uma pergunta que eu não sabia responder. Ele estava melhor, já tinha condições de pegar o seu cavalo e ir para bem longe. Mas essa ideia do bem longe era indesejada. Talvez porque a amizade entre ele e Percival me comovia. Talvez porque ele ainda não estava bem o suficiente, aos meus olhos, ou até porque eu me via nele, indesejada quando estava na minha própria aldeia. E as memórias começaram a vir, a partir disso. Todas as piadas que as pessoas adoravam fazer comigo. Os olhares desconfiados...

- Ele ainda não está bem. Não só fisicamente. Soltá-lo em qualquer lugar é perigoso. - respondi.

- Não mais do que mantê-lo com acesso à tantas armas em um navio. Isso pode virar uma carnificina a qualquer momento, desde que ele entrou todo o tempo que temos é hora extra. Se você não tirá-lo daqui, outras pessoas vão.

- Eu confio nele, e acho que todos também deveriam.

- Foi você quem confiou em se entregar, e no final, você quase morreu e seu povo também.

- Não traga esse assunto de novo. - disse, levantando meu tom de voz - E eu me lembro disso a cada dia, mas eu não posso viver o resto da vida não confiando em ninguém. Se eu estou aqui agora, é para corrigir esse erro e libertar os feéricos. Agora eu preciso falar com Lia e Hans, com licença.

Meu sangue fervia com o que ele dizia. Ele não estava fazendo nada além do seu trabalho como conselheiro, mas talvez eu não quisesse ouvi-lo. Ouvir apenas à mim mesma poderia ser minha própria ruína, mas eu preferia ouvir à mim do que à qualquer outra pessoa, nesse momento.

Chegando na sala que usávamos para reuniões, encontrei Lia e Hans me esperando. Eram dois feéricos que tinham sobrevivido ao ataque na praia. Conversamos amigavelmente sobre o plano de ataque, e acatei algumas sugestões que eles deram, que com certeza eu levaria para serem debatidas na nossa espécie de Conselho, que ocorreria à noite. Todos os assuntos necessários, trataríamos lá - inclusive o tema que eu gostava tanto de evitar.

Hurricane | NimulotOnde histórias criam vida. Descubra agora