Antes do jantar, eu e Lancelot nos refugiamos na enorme livraria do castelo. Com os outros seguindo cada passo de Uther, poderíamos nos dar o luxo de ficarmos um pouco afastados. Nas prateleiras haviam livros de várias línguas, as quais grande parte eu nem conhecia. No nosso idioma, a maioria dos livros eram cristãos, que não me despertavam o mínimo interesse. Dentre todos, consegui encontrar um no mínimo interessante, e passei horas tentando compreendê-lo. Essa era uma das pouquíssimas vezes que eu tinha acesso à um livro inteiro.
- O que você está lendo? - Lancelot perguntou.
- Os contos da Cantuária. - respondi - Mas é desgastante, eu não conheço nem a metade dessas palavras aqui. E você, que livro é esse?
- É sobre um dos Evangelhos.
Me aproximei, passando os olhos pelo livro. Estava escrito em uma língua que eu não tinha ideia, e tinha algumas gravuras nas margens.
- Que língua é essa?
- Latim. É um pouco diferente da nossa... mas é parecida com o que falam na Itália.
Eu mal sabia ler na minha própria língua, e ele parecia ter total conhecimento de outra. Definitivamente poderíamos aprender muito um com o outro.
- É estranho, tudo o que está escrito aqui é diferente da Bíblia que nos mostraram. O Padre nunca mencionou nada sobre o perdão que dizem aqui. Ele só sabia dizer o quanto eu era impuro e tinha um débito eterno com Deus por causa disso. - ele disse.
Talvez o problema não fosse a religião cristã. Claro, não era algo que eu seguia, mas com suas palavras... era como se os caras maus da história fossem os líderes, que distorciam o conhecimento ao seu favor.
- Acha que eles só ensinavam o que era conveniente? - perguntei.
- Possivelmente. Talvez o interesse deles nunca fosse salvar alguém, e sim nos doutrinar a exterminar um povo diferente deles. Eu simplesmente não sei.
Eu não entendia o motivo de tanto ódio por nós. Por que éramos considerados impuros? Por que tínhamos alguma pendência com Deus? Não éramos seres humanos livres?
- Talvez só entendêssemos isso depois de ler todos esses livros e alguns mais... não seria tão ruim passar um tempo aqui, se o Rei não fosse um louco com planos duvidosos.
- Eu não acho que ele vá permanecer assim por muito tempo... - ele disse, em um tom enigmático.
*
Nos reunimos ao redor da mesa de jantar, esperando pelo Rei. Assim que ele chegou, se serviu com o que estava na enorme mesa e começou a tecer seus comentários ácidos sobre cada um que estava presente. Me arrependi mentalmente de ter aceitado o convite, confiando nos planos de Arthur.
- Merlin... ele não é amigo de vocês, por acaso? Pensei que meu mago favorito fosse participar dessa reunião. - Uther disse.
- Ele tem assuntos mais importantes para resolver. - Morgana respondeu.
- E você, bruxa? - o Rei perguntou, olhando na minha direção - Por que dizem que seu sangue é de lobo?
- Eu fui criada em meio à floresta. Aprendi a ser cautelosa com isso.
Ele sorriu e chamou um de seus empregados, pedindo que trouxesse mais uma garrafa de vinho.
- E também a sentir quando estou perto de um homem que envenenou a própria mãe. - completei.
- E as fofocas correm pelo submundo, pelo jeito. Mamãe morreu de um aperto no coração, essa é a única verdade.
Percebi Guinevere tirando um pequeno frasco de sua roupa, que tinha um pó cinzento dentro. Enquanto eu e o Rei tínhamos uma pequena discussão, ela despejou todo o conteúdo em sua taça. O servo voltou com uma garrafa de vinho, abriu, e serviu todos que tinham suas taças vazias. Logo após brindarem, Morgana, que se sentava ao lado do rei, trocou sua taça com Guinevere. Era possível que ninguém da mesa estivesse percebendo isso? Por que todos agiam com tanta naturalidade?
- Não é o que seus servos dizem. - Lancelot o provocou.
- Meus servos leais acompanharam o decadente fim de vida da minha mãe, e podem atestar isso a qualquer momento. De onde vocês ouviram tal mentira? Saibam que...
Ele estava completamente inapto a governar. Ouvia dizer que sua mãe era quem realmente comandava o reino, e em apenas algumas horas ele tinha se mostrado completamente incapaz de assumir seu posto. Tinha certa inteligência, talvez fosse um bom estrategista, mas não sabia proteger o que tinha de mais valioso. Em poucos segundos, Morgana já havia trocado o seu cálice pelo dele, e logo após a explosão de indignação do Rei, ele tomou um gole generoso da taça com a substância desconhecida.
Uther voltou a comer, e o silêncio predominava na sala. Percebia alguns olhares ansiosos em sua direção, e me sentia extremamente aflita por não saber o que estava acontecendo. Se ele tivesse visto a troca de taças, todos nós já estaríamos mortos. Era um plano estúpido e arriscado, e eu começava a ficar enfurecida por ninguém ter me dito nada.
As expressões do Rei se tornaram estranhas, e percebi que ele bebia cada vez mais vinho junto da comida. Aos poucos ele começava a se engasgar, e quando finalmente tentou falar, só conseguiu murmurar algumas coisas sem sentido. Era como se nem tivesse controle sob a sua própria língua.
Guinevere então se levantou, foi até seu lado, e tentou coagi-lo:
- Dizem que esse pó primeiro trava a sua língua, depois as pontas dos dedos, os braços, as pernas, o pescoço e finalmente, o coração. Temos o melhor curandeiro do nosso lado, se você decidir cooperar. Só precisamos que você nomeie Arthur como o novo Rei, o mais rápido possível. Como você está indisposto, seu filho te levará até os seus aposentos.
E assim foi feito: Arthur saiu da sala com o Rei, sobrando apenas eu, Lancelot, Guinevere e Morgana na sala. Me levantei com a força do ódio, me sentindo extremamente traída por todos da mesa.
- O que foi que vocês acabaram de fazer? Vocês pararam por um segundo para pensar nas consequências desse plano? Por que não me disseram nada?
- Estava planejado desde o início. Não te contamos porque você não concordaria. - Morgana disse.
- Por um motivo claro. E se Merlin não chegar a tempo, Arthur perderá o pai que nem teve a oportunidade de conhecer? - perguntei, indignada.
- Merlin está em sua antiga sala, aqui dentro do castelo. Além disso, foi Arthur que bolou tudo isso, logo que soube a verdade. Ele não é útil como príncipe, você mesma disse que precisávamos de um Rei aqui dentro. - Guinevere respondeu.
- Mas a intenção original não era fazer isso matando Uther. Isso aconteceria com o tempo. Você também sabia disso? - perguntei, olhando para Lancelot.
- Não temos tempo. Precisávamos agir de alguma forma. - ele respondeu.
Eu estava completamente desacreditada. Minha posição ainda valia alguma coisa, afinal? Ainda era importante que os reis e rainhas soubessem os planos de ataque? Merlin mal conseguiu restaurar o corpo de Morgana, quem diria curar um homem à beira da morte. Isso ia completamente contra o plano original, de tornarmos Uther nossa fachada para o resto do mundo. Os Paladinos já conheciam Arthur, o que colocaria toda a nossa segurança e reputação em risco. Torná-lo rei tão rapidamente era como colocar uma placa "Feéricos aqui".
Saí da sala indignada, sem dizer mais nenhuma palavra. Subi para o quarto que Uther tinha me designado, ansiando por estar sozinha. Talvez eles não precisassem mais de uma rainha, na verdade. Não seria uma má ideia passar essas responsabilidades para outra pessoa. Pelo menos eu teria menos coisas para me preocupar, por um lado.
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Hurricane | Nimulot
FanfictionLancelot, antes um guerreiro dos Paladinos, se junta à Nimue e seus aliados. Mas, será que a ligação de ambos poderá sobreviver à guerra que libertará os feéricos? Atenção: é necessário ter terminado de assistir a série "Cursed - A Lenda do Lago" p...