Capítulo 9

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À noite, subi ao convés e fiquei observando as estrelas. Por mais que estivesse cansada, toda vez que pregava meus olhos lembrava da cena daquele homem sendo queimado vivo, seus gritos, e a agonia no seu rosto. E, quando eu tentava espantar esse pensamento, vários outros ainda mais obscuros vinham à tona. Decidi então que era melhor não dormir. Talvez espairecer a cabeça me fizesse bem.

Me sentia hipnotizada pelo barulho das águas, o vento suave e o céu iluminado. Era o único jeito que eu tinha encontrado de silenciar meus pensamentos. Ouvi a voz de alguém, e rapidamente, saí do meu estado de transe.

- Perdeu o sono? - perguntou Lancelot, vindo em minha direção.

- Perdi. São muitos pensamentos rondando a minha cabeça. Acho que não dormir é o melhor jeito de afastá-los.

- Sei exatamente como é.

Ele veio até meu lado, um pouco distante, e também ficou observando as estrelas.

- Você conhecia aquele homem? - perguntei.

- Ele era da Trindade, um guerreiro de elite. Éramos treinados pelo mesmo mestre. Parece que eu e você estamos andando com alvos nas costas, agora.

O mistério ao seu redor me seduzia, me fazia querer descobrir tudo o que se passava pela sua cabeça. Apesar de passarmos muito tempo juntos, eu quase não sabia nada sobre ele. Desejava adentrar o seu coração, mas sempre que eu perguntava algo pessoal, ele desviava o assunto. Por mais que eu entendesse ele não querer falar sobre certas coisas, ainda era frustrante. Eu queria ser sua amiga, não apenas alguém para quem ele olhava no meio da multidão.

Desejava que ele realmente compartilhasse sua vida comigo, dissesse o que pensa, o que sente. Eu costumava me contentar apenas com nossos toques, sorrisos e sua presença, mas agora eu queria saber quem ele realmente era, mesmo que a resposta me decepcionasse.

- Por que não me contou antes sobre os seus poderes? - perguntei.

Ele ficou um longo tempo em silêncio, parecendo procurar alguma resposta.

- Não queria que você tivesse medo, como todos os outros.

- Eu não tenho medo de você. - disse, levando minha mão até a sua. Ele finalmente se virou para mim e olhou nos meus olhos, com uma expressão um pouco triste.

- Não precisa mentir para tentar fazer com que eu me sinta melhor. Hoje você tremia tanto que eu mal sabia o que fazer.

Abaixei a cabeça, sem respostas para aquilo. Voltei a observar o mar, ainda com tudo o que eu queria dizer preso na minha garganta.

- Eu só queria que você me considerasse parte da sua vida. - respondi.

- E você é parte da minha vida.

- Então por que você esconde tantas coisas de mim?

- Porque eu não quero te perder! - ele disse, com os olhos marejando - Eu matei pessoas do mesmo sangue que você, e em troca você cuida das minhas feridas. Vi várias tentando fugir e as trouxe de volta, e agora você me abraça e sorri. A sua bondade e pureza me encantam, e eu não quero ser o responsável por acabar com elas.

- Não vai ser você quem vai corromper meus ideais. Só me diga o que você sente, ou pensa, ou algo que você sente falta. Eu escolhi te ajudar, desde o início, e não vou desistir agora. Eu vejo bondade no seu coração, não importa o que todos os outros vejam.

- Como você pode ter certeza?

- Eu... eu apenas... sinto.

- Quer saber o que eu sinto? Que não deveríamos ficar tão próximos, ou nós dois podemos acabar nos queimando no fim do dia.

E escutar aquilo doeu. Tinha passado cada semana tentando me aproximar dele aos poucos, e tudo tinha ido por água abaixo graças à um momento de exaltação. Me afastei dele rápido, para que ele não visse minhas lágrimas. Ouvia ele gritando meu nome e correndo atrás de mim, mas não liguei, até sentir ele me puxando rapidamente em direção ao chão.

- Mas que... - ia resmungando, até perceber uma flecha passando quase rente aos nossos corpos.

- Guerreiros da Trindade.

- Chame Guinevere e outros para içar as velas, eu vou atrasá-los.

Usei algumas madeiras como escudo e finalmente consegui vê-los: estavam enfileirados, um ataque completamente planejado. Com muito esforço, consegui subir uma barricada com alguns galhos e bloquear a maior parte das flechas, mas alguns começavam a cortá-los e vir em direção ao navio. Felizmente, à esse ponto o tumulto já estava gerado e vários desceram com machados e espadas para enfrentá-los.

A areia se sujava de sangue, enquanto a tripulação preparava o navio para sair dali. Desci até a areia com meu sangue fervendo, atingindo qualquer inimigo que passasse por perto de mim. Me sentia completamente possessa pela raiva e ódio, e cada corpo que eu levava ao chão parecia satisfazer mais minha sede de vingança. Percebi um dos membros da Trindade com um arco, que disparava incansavelmente na minha direção, mesmo que eu tivesse meus próprios escudos. Avancei para cima e o desarmei, arrancando sua máscara com violência.

Tomei um susto enorme ao ver o seu rosto conhecido: era Íris. Lembrei da sua tentativa de me matar quando estava naquela ponte, e levantei a espada almejando atingi-la. A única coisa que me impediu de praticar aquele ato horrível foi Morgana, me lançando numa direção oposta.

- Ela só tem 16 anos! - Morgana gritou.

- E o que você quer que eu faça? Aprisioná-la, para ela queimar o navio também?

Percebi Íris correndo em nossa direção com uma espada, pronta para nos atacar. Antes que ela conseguisse, Guinevere apareceu e atingiu a sua cabeça com um escudo, a deixando inconsciente.

- Vai apagá-la por algumas horas. Vamos sair daqui enquanto ninguém vê.

Entrando no navio, larguei a espada. Percebi que seus símbolos estavam marcados na minha mão. Lembrava de como me sentia mais poderosa enquanto atacava tantas pessoas com ela. Talvez fosse verdade. Talvez a espada estivesse me mudando.

Hurricane | NimulotOnde histórias criam vida. Descubra agora