Na biblioteca, Ophelia refugiava-se através da boa literatura. Costumeiramente fugia dos Blackall e escondia-se atrás dos livros, quando não fazia suas visitas a Thomas, a Emma e aos queridos sobrinhos. Quando Frederick ocupava-se em suas tarefas com o pai e o irmão, e Cassandra e a filha estavam em um programa que Ophelia julgava ser apenas delas, a dama preenchia seus dias da maneira que lhe convinha. Muitas vezes, Cassandra não permitia que a amiga ausentasse, sendo sempre muito cortês e gentil para com ela. A amizade havia fortalecido entre as duas; uma era o refúgio da outra. No entanto, Ophelia tinha sua necessidade de compartilhar um momento apenas consigo; tinha o prazer de ficar exclusivamente com as suas reflexões e imaginações.
Naquele dia, sentada ao lado da janela, lia uma obra excelente sobre as antigas civilizações. Ophelia gostava de mesclar a História com a Filosofia, algo herdado de seu falecido e amado pai. Era de seu agrado compreender os povos antecessores, desvendando-lhes os segredos e detalhando-lhes os acontecimentos. Então, naquela leitura obstinada, não notara a presença de um sujeito a bisbilhotar-lhe sorrateiramente. Aos poucos, o intruso aproximou-se da concentrada mulher, e, passo lento sobre passo lento, ficou perto o bastante para arrancar-lhe o livro das mãos, abrutadamente.
— Há coisas que nunca mudam — riu August, examinado a obra em suas mãos. — A Ophelia intelectual jamais se renderá à mediocridade humana. Em sua superioridade, destacar-se-á diante da frivolidade feminina e buscará seu senso crítico através do conhecimento.
— Por favor, August, devolva-me o livro — pediu ela, secamente.
— Ora, minha amiga Ophelia, você já foi mais gentil comigo — ironizou. — O que foi? Acaso nossa amizade cessou-se? Ou será que o casamento a amargurou?
— De fato, éramos muito amigos.
— Éramos? Então, realmente é isso: nossa amizade findou-se — fingiu-se ressentido. — E eu que achei que fosse para sempre. Não havíamos feito um juramento sob a proteção de uma árvore? Tenho certeza que sim.
— Bem, se você pretende ficar por aqui, eu, então, irei retirar-me.
Ao levantar-se, Ophelia fora surpreendida com August à sua frente, encarando-a debochadamente e segurando-lhe a mão.
— Sabe do que eu me recordo, Ophelia? — sussurrou ele, maliciosamente. — Da sua paixonite por mim.
Sentindo o coração acelerar e a face enrubescer, a mulher afastou-se rapidamente, mirando-o de forma revoltosa.
— Se o tive, August, deixei no passado — respondeu diante de uma segurança que precisava ser controlada.
— Claro — zombou ele. — Afinal, hoje você é apaixonada pelo meu irmão, não é mesmo? Por isso vocês se casaram.
Sem receber a confirmação da sua ouvinte, o cavalheiro riu.
— O que foi, Ophelia? Por favor, não me decepcione dizendo que não se casou por amor — simulou espanto. — Justo você, minha amiga... minha ex-amiga, que sempre idealizou um casamento por amor, com um homem belo e deslumbrante, salvando-a das maldades do mundo! Estou deveras devastado. Você foi corrompida pelo casamento por conveniência.
— Por que você está se comportando como um cafajeste, August?
— Assim você me ofende, cunhada. Estou apenas tendo uma conversação amigável, já que há tempos não dialogamos.
— Preferia nossos diálogos de outrora — rebateu Ophelia. — O diálogo atual apenas me entristece.
— Entristece?
— Sim — confirmou. — Entristece-me por ver o homem que você se tornou. Se me casei com Fred é porque tenho, sim, amor por ele.
— Ama o meu irmão? — Cruzou os braços, e, nos lábios, um sorriso detestável. — Lindo! Mas qual amor você se refere, Ophelia? Ao amor fraternal ou ao amor carnal?
— Ao amor romântico, mas isso você não é capaz de entender.
Mantendo a compostura, Ophelia despediu-se de August, retirou-se da biblioteca e subiu as escadas que a levaram ao corredor dos dormitórios. Lá, suspirou longamente e permitiu-se soltar o tremor que sufocava em seu íntimo. Extremamente tensa e nervosa, correu ao seu leito, fechou a porta e parou à frente da janela, remoendo a lembrança do acontecimento recente.
Desde que se mudara a Southfield Park, Ophelia evitara ficar sozinha em um mesmo ambiente em que August Blackall se encontrava. Há anos havia se decepcionado com as atitudes do rapaz, principalmente o que dizia respeito à sua esposa e à sua filha. Era certo — até mesmo para Cassandra — que August fugia para Londres a fim de festejar na orgia e viver sua boemia que deveria ter-se encerrado ainda tão cedo, quando tivera que se casar. Desrespeitando sua família, o sujeito vaidoso e egoísta pouco tempo dedicava-se à mulher e à pequena Ophelia; na verdade, era um pai bastante ausente e, quando a pequena pedia um pouco de atenção, era tratada com repulsa.
Ophelia compadecia-se de Cassandra e da menina. No dia em que realizara o parto da primeira herdeira de August, sentiu-se ligada à criança e à jovem mãe; sentiu-se na responsabilidade de unir-se a elas e tentar protegê-las. Em um instinto, Ophelia entendia que seu dever era mantê-las seguras de uma possível reclusão por parte dos Blackall mesquinhos.
Depois, sua mente preferiu remoer as insinuações de August acerca de seu casamento com Frederick. Era certo que o primeiro desconfiava de um matrimônio negociado, mas o que Ophelia ressentia era que August pudesse descobrir a não consumação do casamento. Caso descobrisse, ela tinha certeza de que o cavalheiro não pouparia esforços para desmascará-la em frente ao Sr. e à Sra. Blackall. Ambos, descontentes com a união, teriam o prazer de poder anular o contrato.
Por fim, sua lembrança fora parar quando dissera amar a Fredrick, algo que não era uma inverdade. Ophelia sempre o amou, mas não romanticamente, como havia afirmado a August. Contudo, pela insinuação do outro, precisou mentir, embora analisasse que o romantismo também poderia ter muitas faces, assim como o amor. O romantismo a que ela se referia em relação a Frederick era a de uma pureza da expressão, na qual se envolvia harmoniosamente com seu amigo marido.
Na porta, uma batida pôde ser escutada, levando Ophelia a despertar dos pensamentos e caminhar em direção à suposta companhia. Entretanto, ao recepcionar a pessoa, ninguém além do livro que lia há pouco tempo na biblioteca e, sobre ele, um pedaço de papel dobrado, foram encontrados. Ophelia analisou os dois lados do corredor para certificar-se de que August estivesse por perto para pregar-lhe uma peça, mas apenas enxergou o vazio. Desconfiada, pegou o livro e o bilhete, retornou ao seu dormitório e fechou a porta. Novamente em sua tranquilidade, pôs-se a ler a seguinte mensagem:
"Esqueceu o livro.
P.S.: Amor romântico também é um amor carnal?"
Amassando o pedaço de papel, Ophelia viu-se irritada pelo atrevimento de August Blackall. A perturbação de ele ser-lhe insolente dava-lhe calafrios. Precisaria falar com Frederick para poderem manter as aparências o melhor possível a fim de não serem alvos de uma futura ruptura por parte dos Blackall.
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Casamento Branco
Historical Fiction[VENCEDORA DO WATTYS2020 | CATEGORIA FICÇÃO HISTÓRICA] Frederick e August Blackall são irmãos gêmeos não-idênticos. Aos doze anos, iniciam aulas particulares com o reverendo George Stanhope, um homem viúvo com três filhos: Thomas, Arthur e a caçula...