Capítulo XXXVI

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Na sala de descanso, a Sra. Fanny aconchegava-se sinuosamente sobre o sofá, na companhia de sua cadelinha Cassy. A yorkshire era a primeira versão animal da Sra. Blackall.  Assim como sua humana, o cãozinho tinha um ar esnobe e preguiçoso, cuja única ocupação da vida era viver do ócio e da mordomia. Quando a Sra. Fanny teve o animalzinho sob seus cuidados, cogitou batizá-lo com o seu próprio nome, pois, segundo a mãe dos gêmeos, Cassy tinha os pelos vistosos e brilhantes como os cabelos da sua proprietária. Estranhamente, a Sra. Blackall agradava-se dessa semelhança tola e de aspecto frívolo; por algum motivo que cabia apenas a ela entender, acreditava-se ter uma superioridade descomunal, assim como sua yorkshire. No fantasioso mundo de Fanny Blackall, as importâncias eram de teores nada desprovidos de necessidades; os acontecimentos deveriam permitir a ela um prazer parvo que proporcionaria uma felicidade ilusória. Fanny Blackall era um daqueles seres humanos que se acreditavam úteis por terem riquezas incontáveis; mas, na verdade, sua utilidade não era maior do que a existência de um yorkshire.

O Sr. Richard Blackall, ao adentrar a sala e avistar sua esposa em sua costumeira postura de mulher tediosamente rica, refletiu por um brevíssimo momento do porquê um dia decidiu-se casar com Fanny. A resposta não viera, porém tudo se baseava em grandes rendimentos de ambas as famílias envolvidas na união. Além disso, na juventude, a antiga Fanny Wilson fora uma mulher muitíssimo bonita, de olhos tão verdes quanto aos de August. Aos poucos, a mulher tornara-se insípida e rançosa, no qual os sentimentos desvencilharam-se e tornaram-se em pó. Por outro lado, o Sr. Blackall também nada de negativo poupara após o casamento. Desde jovem, o Sr. Richard tinha um caráter de menino levado; com o casamento, suas ambições ascenderam, transformando-o em um homem poderoso às custas de consequências duvidosas.

— Gostaria de falar comigo, querida?

O Sr. Blackall sentou-se ao lado da esposa, recebendo o rosnado antipático de Cassy. Pouco se importando com a cadelinha incômoda, o proprietário de Southfield Park fitou a esposa para receber a mensagem.

— Sim, querido, e é um assunto de extrema importância para a nossa família — começou ela, sem emoção. — Estou temerosamente aborrecida com esse casamento de Frederick e Ophelia; suspeito de que ambos estão a conspirar contra nós. Sinto que aquela mocinha irá, a qualquer momento, apunhalar-me pelas costas e roubar-me as joias. Aliás, percebi que mais um de meus anéis sumiram, e acuso a filha do reverendo! Essa moça, ensinada conforme as leis de Deus, tem pecado dentro dessa casa. A ladra, querido Richard, é ela!

— Por favor, Fanny, o que diz não tem nenhuma lógica. Os roubos começaram muito antes de Ophelia chegar a esta casa.

— Mas ela sempre conviveu aqui conosco — rebateu a mulher. — Não compreende, Richard? A ladra sempre esteve conosco e, agora, seus crimes foram facilitados.

— Ophelia não é a ladra, Fanny. Esqueça isso!

— Então, querido, quem poderia ser? — questionou-a de forma desafiadora. — Os empregados? Ou suspeita de nossos filhos?

O Sr. Balckall preferiu manter-se calado. Ainda muito ressentida pela falta de apoio do marido quanto às suas acusações, a Sra. Fanny continuou:

— De qualquer forma, suspeito muitíssimo desse casamento.

— Do que você suspeita, Fanny querida?

— A não consumação dele — revelou de uma vez. — Nos primeiros dias, os dois não dormiram no mesmo dormitório. Hoje em dia, aparentam dormir na mesma cama, mas quem nos garante que na calada na noite não se separam, e cada qual fica isolado em seu leito? Umas das empregadas segredou-me ver muitas vezes Ophelia sair, de manhã, do dormitório que não era o mesmo em que Frederick saíra.

— Não devem dormir todas as noites no mesmo leito, isso é normal. Nós, por exemplo, há anos não dividimos as intimidades. August e Cassandra também não.

— Richard, você não compreende: e se eles nunca dormiram juntos? Suspeito de um casamento não consumado, e, se assim for, conseguiremos anulá-lo. Quem sabe, também consigamos incriminar Ophelia dos constantes roubos.

— Se, de fato, o que diz for verdade, Fanny — repensou o Sr. Blackall, seriamente. —, conseguiremos anular, sim, o casamento de Frederick com Ophelia. Confesso que a mim também não agrada essa união. Se pudermos fazer algo para mudar essa situação, melhor para nós. Poderei arranjar um casamento mais vantajoso ao nosso filho.

— Exatamente, querido! — comemorou Fanny e, do lado, Cassy latiu. — Irei pedir aos empregados que fiquem atentos a todos os movimentos noturnos de Frederick e Ophelia.

— Mas isso não comprova que os dois nunca dormiram juntos.

— Vamos exigir um neto — prontificou a mulher.

— Podemos pressioná-los a isso, mas ainda não será o suficiente.

— Então, que um médico seja chamado para examinar Ophelia.

— Isso é extremo, Fanny! A moça pode sentir-se humilhada.

— Então, o que propõe?

— Proponho que os empregado fiquem de olho, obviamente, sem Frederick e Ophelia desconfiarem. Iremos analisar quantas noites passam juntos; se chegam a passar as noites juntos. Se os empregados nos disserem que em todas noites Ophelia retornou ao seu leito sozinha, nós iremos pressioná-los com a chegada de um neto. E, se este não vier, serei obrigado a chamar o médico e, se precisar, fazer todos os procedimentos jurídicos para a anulação do matrimônio.

— Excelente! — animou-se Fanny, apertando Cassy entre os braços.

Às escondidas, Cassandra escutava toda a conversa entre os sogros. Abismada, correu dali para procurar Ophelia, a qual se escondia atrás dos livros da biblioteca. Imediatamente, a mulher de August expôs o que havia escutado, porém, acreditando na veracidade da união da amiga e do cunhado, apenas queria informar das desconfianças dos Blackall e deixar a dama ciente do complô contra sua pessoa. Agradecida, Ophelia despediu-se calmamente de Cassandra. Todavia, seu interior estava aos tormentos de preocupações que poderiam causar-lhe grandes humilhações. 

A moça subiu as escadas e bateu à porta de Frederick, o qual, para a felicidade dela, retornara a escrever. Naquele momento, trabalhava em um romance que expunha a Guerra Napoleônica. Após escutar as notícias inquietantes. Frederick pôs a pensar a fim de tentar encontrar uma solução. Por fim, olhou Ophelia e disparou:

— Teremos que dividir o mesmo leito, ao menos, por alguns meses.

— Imaginei que essa seria a única resolução razoável — concordou.

— Não fica ofendida por ter sua intimidade revelada a mim?

— Não — sorriu. — Somos marido e mulher, afinal.

— Mas prometi não a desrespeitar.

— E não desrespeitará. Apenas iremos dividir o mesmo cômodo durante as noites. Posso dormir no sofá, e você fica com a sua cama.

— Posso ter muitos defeitos, Ophelia, mas nenhum deles é ser descortês com uma dama, ainda mais essa dama sendo minha esposa — brincou Frederick. — Obviamente, você dormirá na cama; e eu, no sofá.

— Você é um excelente marido, Fred.

— Tento ser — disse de forma descontraída. — Então, estamos acertados? A partir de hoje, iremos dividir o mesmo dormitório?

— Sim, iremos. Não será nenhum sacrifício.

Frederick preferiu não fazer nenhum comentário. O sacrifício ficaria por conta dele, pois seria muito difícil ao romântico rapaz ter tão perto de si a mulher que amava, mas não poder tocá-la.

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