interlúdio: nêmesis

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"Apanhe o que puder, mas não se deixe apanhar; você pertence a si mesmo — esse é todo o segredo da vida", Ivan Turguêniev, Primeiro Amor.


Os olhos se prenderam à figura no palco com o violoncelo. Atrás, uma mulher o acompanhava em um piano. Concert Polonaise, Op. 14. Mãe e filho. Já a tinha visto tantas outras vezes, quando ela era mais jovem e não tinha filhos, quando apenas um olhar seu era suficiente para roubar o ar de qualquer um. Em alguns dos detalhes do rosto restava ainda a sobriedade da beleza que tivera na juventude.

Fora só aquilo que atraíra seu pai, a beleza indescritível de uma jovem em seu piano?

Ela costumava ter uma felicidade cativante e inebriante que se derramava sobre o marfim e o ébano, e pelas bordas de seu sorriso; mas, agora, só restava qualquer coisa de melancólica que ela tentava esconder naqueles olhos, qualquer coisa que tornava a lembrança dela, jovem, sorridente, elegante e majestosa, em algo irritante e fétido na mente dele. E aqueles olhos — estavam exatamente como ele esperava que fossem estar. Ela podia tentar escondê-los a todo custo, mas ele os conhecia bem, havia dissecado aquelas orbes quiméricas e coléricas há muitos anos. Por trás da névoa estava o mar de loucura e raiva, o mar em que ele havia aspirado a se afogar e levá-la junto.

Alguns dos traços mais bonitos da mulher estavam no filho.

Então aquele era o filho dela, e não exatamente do jeito que imaginara.

Não o imaginara, no entanto, franzino, desajeitado nem feio, apesar de sua mente odiosa ter desejado fervorosamente desenhá-lo de tal forma antes de vê-lo. Mas não. Acabara imaginando-o exatamente como devia ser sendo filho de Jeon Jihyun — de uma beleza inebriante e inexplicável, capaz de roubar os olhares e todos os pensamentos de quem a vê; e cujo olhar, risada e jeito possuíam dentes que se fincariam no tempo-espaço e o suspenderiam, criando um momento eterno de puro prazer. Vê-lo superar suas expectativas tornava tudo muito melhor, mais fácil, mais gratificante. Sentia-se ansioso em ver que não era apenas uma beleza inexplicável, mas também paralisante. Tórrida, voluptuosa, embriagante, asfixiante, alucinante e enlouquecedora; apta a afogá-lo em um mar de sensações, das mais desesperadoras e humilhantes às mais apoteóticas.

Estava na hora de Kim Taehyung finalmente sentir alguma coisa dentro daquele vazio que seu ser e sua vida haviam se tornado.

Assim é que podia se definir. A si próprio e à sua vida. O vazio depois do maremoto, não era a calmaria, porque as coisas não se tornaram calmas quando do escândalo. Tornaram-se ocas e semimortas — mas quem sabe já estivessem há tempos, apenas imperceptíveis, e, de repente, houvessem sido enfim desenterradas, e a carcaça, largada apodrecendo exposta ao sol.

Ainda se lembrava das porcelanas e dos vidros se quebrando na briga, das palavras agressivas, dos móveis sendo derrubados em um acesso de fúria louca e descontrolada, e do silêncio que banhava as lágrimas de sua mãe enquanto estas lhe manchavam o rosto. O som agudo dos estilhaços e dos gritos dela haviam incitado a raiva e o rancor nele, tanto quanto o sangue escorrendo pelos dedos e pernas dela.

Recordava-se também de anos mais tarde, quando o incêndio aconteceu e ele foi levado pela polícia e julgado em um tribunal para menores infratores. Tudo que tinha acontecido o fizera ser quem era hoje. Cada um daqueles sentimentos o haviam perfurado e ele os havia decorado para nunca esquecer. Havia se alimentado deles, feito deles sua casa e seus motivos.

Ódio, asco, rancor, fúria. Crescentes, insaciáveis, cheios de furor como o próprio mar inquieto prestes a se erguer em um maremoto.

As ondas haviam se alimentado de repulsa a cada dia mais e quando fosse a hora certa, a voragem das águas carregaria até as pedras mais pesadas presas à praia. Levaria fiordes e falésias. Arrebataria tudo pela frente; tiraria do lugar, arrastaria e destruiria.

Afinal, Taehyung crescera para aquilo.

Destruir.



[...]

⇒ Esta história é um drama sobre traição e vingança. Conterá parafilias, distúrbios mentais, contextos, personagens e relacionamentos que não são exemplos de conduta. A imagem dos meninos não é utilizada com o propósito de difamação, apenas como imagem para personagens de entretenimento. O conteúdo aqui desenvolvido pode não agradar nem ser recomendado para algumas pessoas, por isso, se não se sentir confortável ou não gostar dos temas propostos de antemão, não se recomenda a leitura. +18.

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