UM DIA COMUM

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O ônibus estava lotado, como sempre, com o som constante de buzinas e vozes exasperadas enchendo o ambiente. Todos ali estavam cansados, alguns lutando para manter os olhos abertos enquanto outros dormiam, com a cabeça apoiada contra o vidro da janela.
Quando sentados, alguns arriscavam cochilar em pé, apenas para serem acordados pelas manobras bruscas do motorista, tentando desviar do engarrafamento típico da hora de pico. Carol, como de costume, encontrava-se de pé ao entrar no ônibus, ou, às vezes, tinha a sorte de sentar-se no degrau da porta, onde um grande aviso alertava sobre o perigo.

Naquele dia, porém, teve sorte e encontrou um assento ao lado de sua amiga. Pegou um livro e tentou ler, aproveitando a luz escassa que entrava pela porta de vidro.

Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, emergindo dos sacos vazios e latas raspadas. A retirada não é fácil, muita estrada, muita fome, especialmente para as crianças. Josias, filho do casal, não sobreviveu à jornada; na fome, comeu uma raiz, mandioca crua, que é veneno puro. Lá ficou Josias, na cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai [...] Ficou em paz, sem mais fome, sem mais anos de miséria à frente, para cair no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz [...] Cordulina, porém, queria-o vivo. Sofrendo, mas em pé, caminhando ao lado dela, chorando de fome, brigando com os outros...”.

— Nossa! Está lendo "O Quinze", de Rachel de Queiroz, de novo? — Ana perguntou, olhando para a amiga. — Você realmente ama esse livro, não é mesmo?

Carol não respondeu, apenas fechou o livro após marcar a página. Ana percebeu que sua amiga não estava disposta a responder e suspirou, abrindo sua bolsa.

— Mana... não é implicância... — ela começou, enquanto pegava uma lixa de unhas.

— Aham, sei... — Carol bufou, sorrindo.

— É, talvez um pouco, mas é porque você já leu esse livro três vezes — Ana reclamou, iniciando a manicure. — Às vezes parece que você vive mais no mundo da fantasia do que no mundo real.

Carol deixou escapar um suspiro de exaustão.

— De novo essa conversa.

Se Ana soubesse que estou lendo o livro para fazer um resumo para um aluno do ensino médio em troca de 100 reais, ela perguntaria: Por que ler novamente, se já leu várias vezes? Carol sorriu pensativa.

— Talvez, porque eu realmente goste desse livro. Nunca perco uma oportunidade de ler algo que gosto.

— Me desculpe. — Ana desculpou-se, observando a amiga guardar o livro. — Só acho... Que você deveria aproveitar mais sua juventude! Você parece mais uma senhora de sessenta anos do que uma jovem de dezenove.

Carol riu, mas sua expressão ficou séria quando olhou para suas coisas e viu uma foto de sua família.

— Como, Ana? A vida não é fácil. Não temos segurança, saúde, educação! — Carol disse, irritada. — Veja, Ana, precisamos fazer algo para mudar a situação em que estamos. Pessoas inocentes morrem todos os dias, e você quer que eu leve a vida numa boa?

— Calma, não precisa ficar brava comigo. — Ana defendeu-se, encarando-a.

— Eu sei, mas no mundo em que vivemos, só somos valorizados pelo que temos, não pelo que somos. — Ela disse, quase num sussurro triste.

Ana sabia que Carol era paranoica, mas ela ficou pior desde que sua avó morreu por falta de atendimento médico. Ela estava perdendo a esperança no mundo. Ana não pretendia abandoná-la, mesmo que às vezes Carol fosse uma pessoa difícil de lidar, muito imatura, sonhadora e, às vezes, mimada. Eram melhores amigas desde os sete anos.

OLHOS NEGROS ( Revisando)Onde histórias criam vida. Descubra agora