Capítulo III

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Cada vez mais pessoas se unem em torno do local, enquanto policiais tentam inutilmente afastá-las. Os motoristas, entediados por causa da fila enorme de carros que aumenta a cada segundo, saem de seus veículos para esticar as pernas, passar o tempo... Mas, logo avistam a tragédia diante deles. E curiosos, tentam dar uma espiada no que se passa, empurrando, esbarrando, tentando passar pela multidão e chegar à frente, na barreira de policiais. Como se um show estivesse acontecendo ali. Um Show de Horrores.

Duas ambulâncias estão estacionadas ao redor. Suas portas abertas, exibindo todos os materiais hospitalares lá dentro. Mais duas viaturas. Alguns bombeiros. Um carro que parece ser uma latinha amassada. Cacos de vidro para todos os lados, brilhando sob as luzes dos faróis. Dois gravemente feridos. Mais pessoas curiosas e logo horrorizadas...

Sangue, sangue e sangue. Muito sangue.

"Provavelmente estava bêbado!", alguém diz na multidão.

Outros concordam.

"Que falta de responsabilidade! E ainda com uma criança no carro!", continua mais um.

Mais um coro de palavras de estranhos que não sabem de fato o que ocorreu. Ocupam-se em prestar atenção nos boatos e mentiras.

"Tenho pena da criança...", fala uma voz sincera. E mais uma vez a multidão chia em resposta.

Meu corpo.

Não tenho mais confiança nele. Não sou mais responsável por ele. Somente uma dor alucinante consome cada centímetro dele. Uma dor que me deixa zonza. Uma dor que queima por dentro, e por sua vez se alastra para mais algum lugar onde ela possa se instalar.

Meu corpo. Meu corpo é só um pedaço morto de dor.

E esse é apenas o começo...

Sinto mãos geladas passeando por minha pele. Apertando-me, apalpando-me, segurando-me...

Meu pai... - Eu consigo dizer a um sussurro. Minha garganta está muito seca. Não creio que alguém tenha me escutado. Minha voz está embargada pela agonia.

Pior que isso, é o medo. Tanto medo que se sobrepõe a minha esperança...

"Rápido, rápido! A garota ainda está viva! Mas está perdendo muito sangue...", alguém grita próximo a mim.

"Acho que a perna esquerda foi fraturada... O pulso está muito fraco...". Mais vozes me cercam.

"Eu preciso de oxigênio! Rápido!", grita outra. Meus ouvidos zunem. "Eu preciso de calços de madeira para apoiar a coluna...", o mesma profissional diz.

Por mais que eu tente, meus olhos se recusam a se abrirem. Não respondem a nenhum comando meu. E um cansaço... Um cansaço tão intenso se apodera de mim, mas eu tento lutar. Eu tento resistir a ele. Eu tento...

"O homem...", uma nova voz diz mais baixo, pesarosa, para outra. Não termina a frase. Mas sei o que está subentendido nessas palavras silenciosas. "Ele está morto", ela quer dizer.

Mais barulhos de sirenes. Mais multidão. Mais sangue. Mais dor. Mais medo...

**********

Acordo.

Como sempre, os sonhos relacionados ao acidente me inundam.

Antigamente, eu costumava acordar assustada e com medo. E depois chorava. Agora, eu apenas lamento não ter um sono tranquilo. Eu apenas respiro fundo, e digo a mim mesma para sobreviver ao próximo dia. É só mais um sonho ruim. Eu me eduquei para erguer barreiras contra qualquer sentimento que sinto em relação à tragédia. Incluindo o pânico crescente dentro de mim, o medo, a ausência, o abandono... O problema é que essas barreiras se estilhaçam quando eu durmo.

Entre Lobos & Flores - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora