Capítulo XXVII

7.5K 875 132
                                    

Não!! - Eu grito.

Mas já é tarde demais.

Toda a dimensão a minha volta começa a se desconstruir tão rapidamente quanto se esculpiu: os enormes e lustrosos candelabros de cristais perdem seu brilho. A sinfonia dos músicos perde a harmonia. As pessoas que dançam e conversam alegremente a minha volta se tornam apenas sombras dos fantasmas que eram. Meus pais, Russel e Célia se vão junto ao resto. E em poucos instantes eu me encontro de volta na realidade a qual pertenço.

Mas é como se eu ainda não estivesse de fato presente aqui. A cena que vi continua a se desenvolver diante dos meus olhos repetidas e repetidas vezes, como um disco quebrado. Todos os diálogos ainda ecoam dentro da minha cabeça, perturbando, inquietando, frustrando e desorganizando. É um ciclo sem fim.

Eu pisco algumas vezes e meneio a cabeça, tentando sumir com a neblina que embaça minha vista e qualquer pensamento coerente que possa ter.

Você já escolheu o nome dela?

Uma frase de seis palavras que fazem com que as minhas fiquem entaladas em minha garganta em um nó que cresce cada vez mais. Faz com que eu tenha medo de tirar as conclusões corretas. Faz-me sentir como um poço vazio de dúvidas e incertezas e possibilidades e expectativas. Porque, a única certeza de que tenho, é a de que não quero estar no mesmo tabuleiro que esse jogo.

Você já escolheu o nome dela?

Deixo meus olhos esmaecidos penderem novamente para a pintura. Diferente do que houve com a fotografia, a arte ainda continua intacta. As pinceladas e a coloração ainda estão presas à tela, me fazendo ter de continuar a percorrer os olhos pelos traços que mostram o último momento da lembrança. Eu espio a data da obra; 05/1996.

Nove meses depois eu nasci.

Você já escolheu o nome dela?

Não é coincidência.

Anna não estava grávida de Thomas.

Não o Thomas a quem passei a vida chamando de pai. Não o Thomas de olhos tão azuis como um céu de verão que acreditei de ter herdado. Não o Thomas que cuidou de mim depois que ela se foi. Não o Thomas que me educou e me transmitiu seus valores. Não o Thomas que me fez rir, chorar e amá-lo incondicionalmente. Não o meu Thomas.

Mas, sim, um estranho.

Um estranho a quem nunca poderei chamar de pai. Um estranho que nunca poderei dizer ter herdado seus olhos tão azuis. Que nunca poderá cuidar de mim, me fazer rir, sorrir e amá-lo. Um estranho que nunca me conhecerá tão bem como o outro fez. Que nunca poderá dizer que me ama ou que sentiu saudades de mim. Porque a única coisa que importa para ele, é a garantia de que eu vá ter utilidade em sua alcateia. É a garantia de que vai poder me usar a seu bel prazer.

Meu passado não passa de uma mentira.

Minha vida não passa de uma mentira.

Pergunto-me se também não sou uma delas.

Porque durante todos esses anos eu amei pessoas cujas identidades são falsas. Amei pessoas que me criaram em bolhas de ilusões com fundos dissimulados, e eu fui apenas um fantoche capturado por suas cordas, obedecendo aos comandos e até onde as limitações me permitem ir.

Eu não sei quem eu sou.

Como poderia saber?

Tudo que pensei ser verdade, toda a certeza de que tinha, tudo não passa de um simples remendo na história para que eu não perceba de fato como ela é. Para que eu não saiba como jogar esse jogo a qual pertenço antes mesmo de pensar em dar o próximo lance.

Entre Lobos & Flores - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora