Epílogo

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Alguns dizem que quando se passa por uma situação de risco, medo ou pressente que a morte está a sua espreita, com as garras afiadas esperando para fincá-lo, você vê a vida passando durante alguns segundos diante de seus olhos, como um flashback; um filme sendo rebobinado. Vê as cenas em que você sorriu, chorou ou gargalhou. Vê as cenas em que desejou que o botão de playback estivesse quebrado. Vê as boas e más lembranças. Vê as cenas em que desejou ter feito algo diferente para mudar o final do filme.

Mas, e se não é você a estar sendo engolido pelo véu da morte ou o manto do pânico? E se for alguém que está presente em todas as suas lembranças, tornando-a uma parte importante e indispensável, necessária, em sua vida? Também seria possível assistir ao filme?

Para Madeline Miller Jones, sim.

Ela deixou a clareira e a casa onde achou que tudo havia terminado, abandonando seu amor de uma vida inteira sob os cuidados de seu irmão, e correu uma distância insuportável de tão longa em busca da única coisa que realmente não a fazia sentir-se abandonada ou sozinha. A única coisa à qual deveria ser responsável e fiel durante todo o tempo em que fosse preciso. A única coisa que ainda fazia a palavra "família" ter algum sentido em sua vida; sua irmãzinha.

No entanto, parece que quando estamos com pressa, todas as distâncias se tornam infinitamente maiores, enquanto o tempo crava uma estaca firme e profunda em seu peito, que a cada segundo se aproxima mais de seu coração. Você o sente bater cada vez mais depressa, retumbando a zoada em seus ouvidos, bombeando sangue para todo o seu corpo, que a qualquer momento pode entrar em colapso pelo esgotamento.

Mas você não para. Não para até chegar ao seu destino, com medo de que seja tarde demais. Você ultrapassa todos os limites e barreiras até o último segundo, com apenas um único ramo despedaçado de esperança. Porque quando a menina, ainda na forma lupina, finalmente alcançou o pé da floresta, no quintal de sua casa, essa era a única coisa que podia ter em mãos; um fio de esperança, que se despedaçou em trapos aos seus pés, quando encarou o cenário a sua frente.

A casa onde seus pais haviam construído um pedaço de sua história juntos queimava em brasa e calor, incendiando cada parede, pilastra e cômodo presentes. Transformando em cinzas todas as memórias que haviam reunido ali, e que agora se espalhavam ao vento com a fumaça negra. Mas as labaredas de fogo pareciam queimar diretamente a ela, arrastando-a para as chamas vermelhas e douradas, que dançavam em folia, consumindo tudo pela frente.

Ela ouviu uma janela se quebrar e logo depois uma série de tossidas secas, tirando-a do transe momentâneo a qual se encontrava. A garota se viu passando de loba a humana, se esforçando ao máximo para isso, sem se importar com sua nudez, e correu mais uma vez para ajudar quem quer fosse. Deu a volta na casa, contornando a varanda e encontrou um corpo exaurido e fraco no chão, que mal respirava.

Movida por uma chama de alívio e urgência, arrastou-o para uma área segura do quintal, enquanto implorava para que ele ficasse bem. Deitou sua cabeça na grama, passou a mão por seu rosto, ombros e peito, procurando possíveis ferimentos graves, mas ele ainda estava inteiro.

Ela soluçou quando viu que seu peito subia e descia, mesmo que fracamente. Podia ouvir seus batimentos ruidosos, estabelecendo um ritmo contínuo. Ele era forte, e iria se recuperar, ela sabia disso. Mas ainda estava com medo que algo lhe acontecesse.

─ Kane! - Ela o chamou. Precisava ouvir sua voz, só assim ela se sentiria um pouco mais calma. - Kane, por favor, fale comigo! Olhe para mim!

Os olhos do menino tremularam e levaram alguns instantes para obedecer a seu comando, mas quando se abriram, ele ficou momentaneamente paralisado pelo choque. Ela e seu melhor amigo haviam sumido há dias e agora ela estava ali, ao seu lado, implorando para que estivesse bem, pálida como um fantasma. Ele era quem deveria estar dizendo isso a ela.

Madeline pôde ver a dor nos olhos dele, depois do choque de reconhecimento. Pôde ver o desespero e o pânico por ter falhado. Pôde ver o sentimento débil da incapacidade e da incompetência. Ele se culpava tanto quanto ela, e podia sentir que a cada segundo seu coração se apertava mais com a realidade que teria de enfrentar.

Por um momento, o rapaz pensou que não teria feito diferença se o fogo o tivesse consumido junto com a casa e Madeline não tivesse aparecido; ele já havia perdido algo com o qual estava disposto a trocar por sua vida. E agora que não a tinha, se sentia como um grande buraco que nunca poderia ser preenchido.

─ Maddie... - Ele inflou o peito de ar, focando os olhos nos dela. Não sabia como dizer o que tinha de falar. Sentia vergonha de si próprio. - E-eu... Eu... Eu não pude fazer nada. Tudo aconteceu muito depressa...

─ O que aconteceu, Kane? - Ela segurou em ambos os lados de sua cabeça, amparando-o.

Kane não parecia mais o imenso lobo assustador e ao mesmo tempo brincalhão, mas sim apenas um menininho triste e sozinho. Ele tremia como uma folha.

Madeline já sabia a resposta para a própria pergunta. Mas dizê-la em voz alta... Seria doloroso. Muito doloroso.

─ Eles a levaram. - O rapaz abaixou os olhos, humilhado. - Ele levou Scarlett. De alguma forma ele passou pelo círculo e atacou a casa. Eu estava sozinho e eles eram muitos. Desculpe, eu... Eu não consegui salvá-la. É minha culpa.

Foi como levar um soco violento no estômago, e sentir todo o ar escapar de seus pulmões. Ela fechou os olhos, embargada pela agonia e remorso de tê-la deixado. Uma lágrima densa escorreu por seu rosto. E nessa hora, Maddie pôde ver o flashback se passando por de trás de suas pálpebras; reviveu a lembrança de quando sua irmãzinha nasceu; quando ela começou a andar, se pendurando em suas pernas; quando ficava em casa sozinha com ela e tinha nojo de trocar suas fraldas; quando a levava para brincar no parque. E mais velha quando ia de bicicleta para escola com Sky; quando dormiam agarradas na mesma cama, e uma vez quando a pequena a chamou de mãe. E a mais recente, quando a pôs para dormir e lhe prometeu que sempre a protegeria.

─ Não é culpa sua, Kane. - Ela o encarou de novo. - Se alguém tem de se sentir culpado, esse alguém sou eu. Fui eu quem a deixei, fui eu quem quebrei a promessa...

─ Mas eu podia ter feito algo, qualquer coisa e...

─ Não! Não podia, não! - Maddie o impediu de prosseguir. - Você poderia ter se machucado. Ninguém entra no caminho de Russel e sai ileso. - Ela pensou em Benjamin, no estado decadente em que estava. - Eu não me perdoaria se algo acontecesse com você também.

Kane viu a verdade na voz da menina e não suportando olhar para o tumulto em seus olhos, puxou-a para um abraço, procurando confortar a ambos com esse simples gesto. Esfregou suas mãos pelas costas dela, enquanto sentia que Madeline tremia tanto quanto ele, umedecendo as roupas dele com suas lágrimas.

─ Prometa que vamos encontrá-la. - Pediu a ele, a voz não passando de um sussurro em meio ao ruído alto da madeira da casa crepitando nas chamas cada vez mais altas. Porém, acrescentou mais forte depois: - E vamos acabar com ele.

Ele a apertou mais contra si, cobrindo sua nudez com seu corpo musculoso, protegendo-a como podia. Sabia que ela acabara de transmutar para a forma humana, e podia sentir o cheiro de Benjamin nela, mas não lhe parecia o momento mais apropriado para perguntar por isso. Ele preferiu esperar a hora certa, o importante é que ela estava relativamente bem - pelo menos por fora. Maddie não sabia, mas naquele dia, acabara de ganhar um irmão. Um aliado que seria fiel a ela até o fim.

Com uma determinação e força - e raiva, também - surpreendentes, que não sabia de onde as havia tirado, lhe respondeu:

─ Eu prometo. - Ele disse. - E nessa hora, será a vez dele de queimar.

Fim do Livro 1.

Entre Lobos & Flores - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora