Capítulo IV

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Repasso mais uma vez a cena do quintal em minha cabeça. Se o lobo quisesse me matar, o teria feito, com ou sem intervenção de Sky. Se entendo alguma coisa de instinto animal, é que nada poderia tê-lo detido de conseguir uma presa fácil. Principalmente uma garotinha de oito anos. Por isso, algo não se encaixa. Por isso eu tento pensar em uma explicativa lógica para isso. Mas, há uma peça faltando no quebra cabeça. Uma peça que eu não sei se perdi ou, se ela só está em algum lugar debaixo do meu nariz, escondida sob outra.

Solto uma grande lufada de ar que embaça o vidro da janela. Eu não tenho porque me preocupar, a polícia e o controle de animais já estão atrás da fera. Eu não tenho que por mais um problema em minha lista. Ela já está muito grande.

Ando até a porta dos fundos e sem pensar duas vezes, abro-a.

Nada muito impressionante. Apenas árvores, galhos retorcidos, folhas voando. Uma simples floresta, que ao anoitecer ganha novas formas e sombras sob a noite. Está aí mais uma prova para minhas paranoias.

Fecho os olhos e inspiro o ar da manhã, ainda com cheiro de terra molhada, que adentra pela porta. Eu estou apoiada com o corpo de lado na mesma, quando sinto algo áspero roçar na minha bochecha.

Quando me viro em direção à porta, estão ali os mesmo sulcos da porta da frente. As mesmas arranhaduras. Como se garras afiadas tivessem rasgado a madeira e descascado a tinta. De fato, Célia se esqueceu de mencionar qual tipo de monstro de estimação ela tinha.

Não me permito associar isso a qualquer outra coisa irrelevante sobre animais selvagens a solta. Eu vou comprar tintas na cidade. Posso pintar as portas e evitar que minha mente se desvie do caminho certo.

Fecho a porta novamente, e volto ao sofá. Ligo a televisão de novo, enquanto escuto Sky descendo as escadas, pulando de degrau em degrau. Retorno para seu canal de desenhos.

─ Maddie, eu acho muito bom você caprichar no desenho. - Ela faz uma cara de cansada, como se tivesse acabado de correr uma maratona, e enxuga uma gota invisível de suor. - Deu muito trabalho achar esse caderno.

─ Onde você o procurou?

─ Em todos os lugares. - Ela se senta ao meu lado, me entregando o caderno e o estojo de lápis.

─ E quando parou para perceber que ele estava em cima da cama? - Pergunto com um sorriso.

─ Quando parei para me concentrar no óbvio.

─ No óbvio?

─ Sim. - Ela dá de ombros. - Achei que você fosse escondê-lo em algum lugar, como um diário.

─ São só desenhos, Sky. E não segredos. - Ela me dá um aceno de cabeça meio descrente e volta a prestar atenção na televisão. Escuto a risada do Bob Esponja ecoar pela casa.

Para Scarlett, que ainda não tem muita noção de vida, quero dizer, ela ainda é uma criança, esses desenhos não passam de rabiscos amadores. E, além disso, eu não gosto muito que ela veja o que eu apronto nessas páginas.

Eu desenho tudo nele. O que não consigo expressar em palavras, eu transcrevo para o papel em forma de rabiscos. Tudo o que vejo de interessante em algum lugar, alguma lembrança do passado, algo que seja importante, eu traço nesse caderno.

Uma grande parte dele - quase a metade, na verdade -, contém vários esboços dos sonhos que eu tenho sobre o acidente. Os que são mais reais e me transportam direto para o passado. É uma parte triste desse caderno. Mas, também há vários desenhos de mamãe. Eu tento ao máximo não me esquecer de cada detalhe seu. E tento mantê-los vivos nos traços. É uma forma de tê-la sempre presente comigo. Todos os meus pesares, saudades, melancolias, lembranças, sonhos, recordações... Estão impregnados nessas folhas. É uma parte importante de mim.

Entre Lobos & Flores - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora