Capítulo XXXI - Parte I

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Minha cabeça lateja. Posso ouvir o ruído dos meus batimentos em meus tímpanos. Parece que há um martelar constante dentro dela, um enorme pêndulo que se balança de um lado para o outro. E não sei por que, como se fosse a melhor hora para isso, me lembro de alguns versos que ouvi não sei onde:

"Dorme meu lindo bebê, que ele tem uma arma na mão. Só quer fazer da mamãe: sangue e um tapete para o chão.
Dorme logo meu peludo.
É perigoso lá fora;
tem monstros caçando lobos,
não podemos brincar agora...".

─ Madeline.

Desperto com um suspiro. Percebo que meu corpo continua uma massa pesada e dolorida desde que cheguei aqui. Parece que fiz exercícios por uma semana sem descansar um segundo se quer.

Meus olhos se abrem e se focam em uma fila de pequenas formigas que passeiam perto do meu corpo jogado mais uma vez a esmo dentro da cela. Invejo a ridícula forma como elas andam por entre as grades e escalam o montinho de acônito do círculo, escapando para fora dele. Bufo, frustrada.

Faço menção de levantar, mas me arrependo assim que o faço. Uma dor intensa, como um milhão de ferroadas incrustadas em minha pele, me percorre desde a base do meu pescoço, se espalhando pelo ombro até o braço, me fazendo soltar um lamurio alto quando levo minha mão à origem da agonia em um ato mecânico e instintivo.

Retiro-a rapidamente e ofego quando meus dedos voltam coloridos de sangue. Penso em Russel cravando seus dentes profundos em mim e bebendo o meu sangue.

─ Ainda não está se curando. 

Levanto os olhos para Benjamin que faz minha ferida parecer uma picada de mosquito em comparação com as dele. Pergunto-me como ainda consegue forças para falar.

─ E nem você. - Digo, um pouco ríspida demais, limpando a mão no vestido branco de Anna.

─ Eu não sou como você. - Fala. Percebo que estamos sozinhos no cômodo de novo, que também retorna a penumbra. - Levo mais tempo para curar do que um híbrido.

─ Então porque não me curei ainda?

─ A bala que Célia atirou em você era feita de acônito. - Conta. - Acônito da Lua. Raro, mas não impossível de conseguir. Só conheci uma pessoa até hoje que os cultiva. Mas o fato é que o efeito é bem pior do que Wolfsbane.

─ E quanto tempo leva para isso sair de mim?

─ Quanto tempo um humano leva para sair de um resfriado? - Dá de ombros. - É o mesmo princípio. Como se você ficasse doente durante alguns dias. Incapaz de se transformar ou ter qualquer habilidade sobre-humana.

─ Como se curar. - Eu amaldiçoo todos os ancestrais de Célia. - Perfeito. Então eu meio que voltei a ser humana, mesmo que temporariamente?

─ Basicamente. - Responde, e depois comenta retoricamente mais para si do que para mim: - Parece que até híbridos tem seus pontos fracos.

─ E como você está? - Não sei por que pergunto isto. Idiota! Ele está péssimo. Mas a verdade é que não quero que o silêncio e a tensão que se instalou entre nós nos envolva cada vez mais.

─ Já estive melhor. - Ironiza. - Mas talvez eu mereça tudo isso.

─ Não. - O calo.

A qualquer hora o peso que as lágrimas fazem em meus olhos e todo o medo que sinto irão me romper e sei que não terei forças para nos tirar desse maldito lugar. Já basta ser humana de novo.

─ Você tem que saber. - Ele continua. - Não pode acreditar em Russel sem antes me ouvir. O acordo que fizemos... Eu estava desesperado. Não suportava mais a sua ausência. E várias vezes eu tentei tirar minha própria vida. A morte me pareceu mais tranquila do que viver sem você...

─ Benjamin, por favor, pare...

─ Mas ele tem razão: eu fui covarde e fraco demais para fazer isso sozinho. Patético, eu sei. Por isso, quando disse que me mataria e em troca eu deveria tirar a sua vida, eu aceitei. Pelo menos assim eu iria ter um motivo real para me matar.

Sua voz está vazia, e seus olhos tão vítreos quanto duas janelas transparentes. O verde apenas sendo engolido belo buraco negro de suas pupilas. Ele parece cansado. Não pelo que Russel fez com ele, mas também pelo tempo. Cansado de lutar uma batalha que não é sua. Uma guerra em que ele está no meio do fogo cruzado por que só cometeu um único erro: se apaixonar por mim.

─ Por isso, por favor, não me odeie. - Pede, melancólico. Por um momento parece apenas uma criança indefesa. - Mas eu vou entender se você quiser. Eu tentei consertar o que fiz, mas só piorei as coisas. Invadi sua casa, destruí o grimório, te ameacei usando sua própria irmã, só para não ter que cumprir o acordo. Eu não mereço você, Maddie.

Eu perco a capacidade de falar. Eu quero consolá-lo e dizer que está errado e que tudo vai ficar bem e vamos sair daqui e que vamos compensar todo o tempo perdido, mas não consigo. Um grande nó se forma em minha garganta, e eu tento engoli-lo rapidamente, assim como as lágrimas e o soluço que querem tomar contar de mim.

─ Como eu poderia te odiar, Benjamin?

Por fim consigo dizer, depois de uma eternidade, quando seus olhos que me encaravam com uma intensidade avassaladora já estavam quase se fechando, e aceitando que teriam de viver com a culpa e o ódio.

Ele os abre novamente, as sobrancelhas se elevando de espanto, formando o suave "v" no meio de sua testa que me dá vontade de beijá-lo. Por um segundo, sei que ele prende a respiração a espera do que vou dizer, e imagino que seu coração bata tão rápido quanto o meu. Eu gostaria de poder abraçá-lo, bem forte, e nunca mais soltar.

─ Eu me lembro de que havia muitas borboletas perto do campo de flores da minha casa. - Começo, encarando seus olhos, revelando a ele o que lembro e aprofundando os sulcos em sua testa. - Elas eram lindas, cada uma delas. Mas havia uma que era a minha favorita. Ela era verde esmeralda. Da cor dos seus olhos. Por isso era a minha favorita.

Rapidamente enxugo uma lágrima sorrateira que desce pelo meu rosto, e continuo:

─ Então eu a perseguia toda vez que a via. E me lembro de que passava horas nisso, e acabava me perdendo do caminho de casa. - Conto. Revivo a lembrança. - Nas primeiras vezes que isso aconteceu, eu fiquei com medo. Medo de que ninguém mais me encontrasse ou desistisse de procurar por mim. Mas então, você aparecia e me dizia que tudo ia ficar bem e que, não importava onde eu estava, você sempre iria me encontrar e me levar de volta para casa. Dizia-me que eu podia ir montada em você. - Sorrio para ele.

"Por isso não fiquei com medo das outras vezes que isso aconteceu. Porque eu sabia que você sempre estaria lá para me dizer que estava tudo bem. Eu sabia que sempre iria encontrar o caminho de volta até você. - Digo a ele. - E o fato é que nada disso mudou, Benjamin. Não posso me lembrar de tudo, mas sei que sempre me lembrarei de como encontrar o caminho de volta para casa. De volta para você. Nem o tempo, nem um feitiço idiota de memória ou o que você fez vão fazer com que eu me perca de você outra vez. Sempre vamos poder voltar para casa, juntos. E vai ficar tudo bem.

─ Madeline... - Benjamin diz meu nome e ao mesmo tempo solta todo o ar de seu peito, fechando os olhos por alguns segundos, fazendo uma careta angustiada. E quando os abre novamente percebo que chora.

─ Eu não odeio você, Ben. - Enxugo minhas próprias lágrimas. - Pelo contrário...

─ Tem noção do quanto eu daria tudo para te beijar agora? - Pergunta, e posso dizer que sinto o mesmo. - Mas, se não me odeia, o que sente então?

Sei que ele sabe a resposta e percebo o sorriso que ameaça tomar seus lábios, mas ao invés de dar o que ele quer, apenas digo:

─ Quando sairmos daqui, eu te conto. - Sorrio para ele.

─ Não vejo a hora. - Ele sorri de volta como um menino inocente que ganhou o maior presente no natal. Deus, como eu o amo...

Entre Lobos & Flores - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora