23. Gilbert

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Os dias e meses que sucederam o acidente podem ser considerados os melhores da minha vida. Eu podia afirmar que eu e Anne estávamos praticamente morando juntos já que estávamos oficialmente namorando e não queríamos perder mais tempo. Eu não podia ficar mais feliz por ter beirado a morte. A fisioterapia era um processo doloroso, mas eu estava quase 100% recuperado.
Alguns dias depois que cheguei em casa, o capitão Lacroix veio me visitar para desejar melhoras.

— Então, Blythe — ele falou, depositando uma xícara de café na mesinha de centro da minha sala— Sinto muito pelo seu acidente.
— Foi feio, mas poderia ter sido pior.
— Você pode ficar despreocupado em relação ao trabalho, encontramos alguém para o substituir.
— Me substituir? Mas eu pretendo voltar o mais rápido possível!
— Imagino, mas precisamos de alguém para manter as coisas andando enquanto você está longe... E estão achando que você estava dirigindo bêbado, isso te deixa com uma péssima imagem na delegacia e para seus superiores.
— O que?! Isso não é verdade! O senhor sabe, não sabe?!
— Nunca me ocorreu a ideia de que isso poderia ser verdade, Blythe. Não se preocupe, é fácil provar que eles estão enganados, a sargento Flores irá me auxiliar.
— Entendo e agradeço muito!
— Espero que volte logo, Blythe. A nova sargento é bem... Bom, ela é boa, de fato, mas não é você — ele disse se dirigindo à porta.
— Oh, também te amo capitão!
— Menos, Blythe. Menos.

O capitão saiu e Anne chegou logo em seguida. É claro, já estávamos juntos, eu sabia que ela também era apaixonada por mim, mas eu não conseguia encarar aquilo como uma situação comum. Todas as vezes que a observava entrar pela porta e vir na minha direção, eu sentia o mundo parar, e então éramos só nós dois.
Ela parou de braços cruzados na minha frente e me observou com um sorriso debochado, logo percebi que eu estava com uma cara de bobo.

— Você tem que parar de me olhar assim — ela falou sentando ao meu lado no sofá.
— Assim como? Estava te olhando normal.
— É verdade, você sempre me olhou com essa cara de bocó.
— Você é tão doce, tão meiga, tão carinhosa...
— Ah, para. Você me deixa tímida, é só isso...
— Não consigo me acostumar com a gente desse jeito, é uma sensação incrível e eu não quero que acabe.
— Vai ter que se acostumar! — ela disse antes de se aproximar e me beijar.
— Eu posso me acostumar com isso — Anne se encostou no meu ombro e puxou o celular do bolso.
— O que seu chefe tava fazendo aqui?
— Veio dizer que me substituíram, e que estou com fama de bêbado na delegacia.
— Isso é injusto!
— Eu sei, meu bem. Mas vai dar tudo certo... Eu acho.

Continuamos juntos no sofá enquanto eu passava meus dedos pelo cabelo dela por um tempo.
— 15 mensagens do meu pai?! Ah não...
— O que foi, bem?
— Lembra do meu primo Davy? Que a gente evitava porque ele tentava ser melhor que a gente em tudo e era super sem noção?
— Como esquecer? A gente se odiava em segredo, mas todo mundo sabia.
— Ele está na cidade e quer me ver. Meu pai disse onde eu estava e ele está vindo pra cá.
— Por que ele não disse que você tinha se mudado pro outro lado do mundo?! Ele vai aprender meu endereço! E agora?!
— Você sabe que Walter Shirley nunca mente!
— A gente foge pras colinas ou... — a batida na porta me interrompeu.
— Tarde demais, finge simpatia!

Anne levantou— se e foi até a porta treinando o sorriso menos falso que ela conseguia.
— Davy!
— Anne! — o rapaz com feições parecidas com as de Anne entrou sem pedir licença, abraçando Anne. Ele não era uma pessoa ruim, só era insuportável, até onde eu lembrava.
— Que saudade de você! E você... Você é o Blythe! Nossa! Como você cresceu! Já fez 18 anos?
— Claro que eu cresci, Davy. Ou você achou que ia vir pra cidade 20 anos depois e eu iria continuar com 7 anos? A gente tem a mesma idade!
— Coisa boa, hein! — Anne falou, cortando a minha fala, tentando encerrar o assunto — O que te traz a cidade, Davy?
— Problemas em Toronto. Precisei de um tempo longe da minha mãe, longe de todo mundo... Aí lembrei que tenho uma família e amigos aqui com quem eu podia contar e vim.
— Problemas? — Anne perguntou, apenas fiquei calado e me exclui da conversa, passando o dedo pelo celular para evitar olhar para eles.
— Sim.
— Que tipo de problemas? Os tios estão bem?
— Ah, eles estão ótimos. O problema é que aparentemente, eles não querem lidar com um filho bissexual por agora.
— O que?! — eu e Anne falamos simultaneamente, voltei a prestar atenção neles.
— Brigamos, não quis ficar na cidade
— Eu sinto muito, pode ficar o quanto quiser.
— Então você não liga?
— Claro que não!
— E você Gilbert?
— Eu?! — percebi que estavam falando comigo — Eu não tenho nada a ver com isso, se é assim que você é, não deixe que ninguém tente te mudar nem te convencer de algo diferente.
— Estou tão feliz! É bom saber que eu sou aceito em algum lugar.
— Ainda te acho insuportável, — falei — mas você é bem vindo.
— Obrigado, de verdade! Então me contem! O que anda rolando por aqui? Me falem sobre como Gilbert ganhou esse monte de cicatrizes!
— Foi um acidente, Davy — Anne respondeu, sentando ao meu lado novamente.
— Vocês ainda são carne e unha, não é?
— Na verdade, a gente namora — respondi.
— Sério?! Finalmente! Sabe que meu maior medo era voltar pra Avonlea e descobrir que vocês ainda estavam naquela enrolação de "só amigos"? Me contem tudo!

Achei que Davy estava diferente, mas em alguns minutos de conversa descobri que ele continuava o mesmo. Era estranho admitir que eu estava simpatizando com ele —mais do que quando nos conhecemos— a ponto de sentir sua falta quando ele saiu e voltou para a casa dos Shirley.

Deixando eu e Anne a sós.
— Ele não é mais tão irritante quanto eu lembrava — ela disse.
— Por enquanto, vamos esperar...

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