10. Anne

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A partir daquele dia, o tempo passou voando. Em um dia recebíamos notícias de uma melhora em Ruby e no outro apareciam duas complicações diferentes.
Eu acampava no hospital tentando ficar o mais próximo dela o possível, e tentávamos fingir que estava tudo bem. Gilbert tentava me acompanhar sempre que podia, sendo o amigo mais leal e companheiro que alguém poderia ter.

Naquele dia, o céu estava quase cinza. A melancolia estava espalhada no ar como aerosóis de um vírus que poderia nos matar de tristeza.
Baixei filmes alegres no meu notebook e levei para o hospital, se o dia estava sem cor para mim, eu nem podia imaginar como estava sendo para Ruby que estava confinada em um quarto ligada a diversos monitores.
Moody tinha ido em casa para descansar um pouco já que todos os dias ele estava lá com ela e não pregava o olho nem por um segundo, e Gilbert estava trabalhando. Então estávamos só nós duas naquele quarto, com o filme passando no notebook que estava apoiado no colo de Ruby enquanto eu sentava ao seu lado em uma poltrona, recostando minha cabeça no seu ombro. Ela levantou a mão e pausou o filme.

— Anne? — ela falava com dificuldade, sua voz era baixa e arrastada, mas ainda assim muito limpa e compreensível.
— Sim?
— Precisamos conversar.
— O que?! Sobre oque? — indaguei.
— Sobre você estar fugindo do Blythe. — ela disse com um sorriso — Você sabe, Anne.
— Ruby, eu não...— eu estava prestes a mentir, mas ela me interrompeu.
— Anne Shirley! Eu não sei quanto tempo terei pra te falar isso e não sei por quanto tempo terei voz, então cale-se e me deixe falar.

Arregalei os olhos em surpresa, não sei quantas vezes vi Ruby falar daquele jeito, mas não foram muitas. Me doía ver como ela tinha consciência de que havia a probabilidades dela estar com o seu tempo contado, então a deixei falar.

— Tudo bem, você que manda.
— Escute com atenção, Anne. Eu quero que você análise a sua vida e sua relação com o Gilbert e me diga, porque você foge dele?
— Eu...
— Não diga que não, eu lembro muito bem de cada coisa que eu vi e posso usá-las contra você nesse julgamento — ela disse, rindo.
— Você está me julgando? — ri junto dela, pois era inevitável.
— É sério, Anne. Me fala.
— Tá bom. Sinceramente? Meu medo é perder ele, Ruby. Não quero colocar nossa relação em um jogo de apostas e promessas desenterrada de quando nós éramos duas crianças.
— Não posso dizer o que você tem que fazer e não vou dizer o que acho é certo. Mas eu sei que Gilbert tem tanto pra te oferecer, Anne. — ela penetrou o olhar dentro do meu — Vocês construíram uma amizade muito forte que eu acredito que não vai se abalar por nenhum problema que possa ser causado por um relacionamento. E ele claramente te ama, cuida de você e faz de tudo por você. Ele precisa de você e você precisa dele, suas almas se pertencem, e isso é óbvio. Não quero que me leve a mal, não estou querendo forçar você a ficar com alguém contra sua vontade! Mas sei que vocês seriam felizes juntos... O que eu quero dizer é que quero que você seja feliz, estando eu aqui para ver isso ou não.
— Ruby, não fala assim...
— Mas é verdade, Anne. Não é mais uma questão de apostas ou promessas.
— Eu entendo você, mas estou saindo com Roy no momento. Já saímos algumas vezes, restaurante, cinema... Ele é legal, gentil, bem romântico também.
- Gilbert é tudo isso e um pouco mais. E eu sei que você só tá saindo com ele por que não quer perder a aposta. Afinal, "se não estivermos com ninguém", certo?
— Você é tão espertinha, não é? Não estou saindo com ele só por causa da aposta, sua chata.
— Sou esperta sim, a ponto de você não conseguir me enganar, ainda sou mais que você, que tá deixando o Gilbert escapar.
— Eu entendo o que você quer dizer, mas ele não vai escapar. Eu amo ele, tanto quanto sei que ele me ama e quero ele comigo pro resto da vida independente da nossa relação. Amigos, inimigos, colegas, marido e mulher, tanto faz... O que eu realmente quero é priorizar nossa amizade acima de tudo, sem complicar as coisas, sabe?
- Sei. Não quero te pressionar, só saiba que se eu morrer — ou quando eu morrer — e vocês se casarem, eu vou dar um jeito de aparecer nesse casamento! Nem que seja como uma borboleta lilás.
- Borboleta lilás? Isso é bem específico.
- Pois é, você vai saber que sou eu.

Continuamos vendo o filme até Moody aparecer na porta do quarto com Gilbert.
— Estávamos falando mal de vocês dois — falei, sorrindo para ambos.
— É verdade! A Anne me disse que o Gilbert não toma banho.
— Precisava espalhar, Anne?! — Gilbert se fez de ofendido.
— Precisava sim!

Me levantei para abraçar Gilbert da forma que sempre nos cumprimentavamos, Moody se abaixou perto de Ruby e lhe beijou. O dia que começou cinza, agora ganhava cor. Ruby parecia bem, eu estava me inclinando para a decisão de finalmente ceder para Gilbert o que nós dois queríamos, mas só ele demonstrava. Tudo parecia entrar nos eixos.

Gilbert saiu para pegar um café e eu continuei no quarto conversando com Ruby e Moody. 10 minutos se passaram e imaginei que Gilbert estava demorando, talvez tivesse desmaiado vendo alguém tomando uma injeção já que ele tinha pavor de agulhas.
Caminhei até a cafeteria que ficava no primeiro andar do hospital, cogitei a possibilidade de abrir a "porta de sentimentos guardados e reprimidos desde a nossa adolescência" para ele naquele momento.
Mas recuei.

Quando cheguei na cafeteria, o cheiro de café invadiu minha consciência.
E a cena de Gilbert conversando com uma médica loira, alta e muito bonita encheu meus olhos.
Eles estavam bem próximos, Gilbert parecia ter perdido os sentidos olhando para ela.
Aproveitei que ele não havia me visto, dei meia volta e voltei para o quarto de Ruby. Me despedi do casal e indo para casa, decidida a passar um cadeado naquela porta e não abrir mais ela. Que ideia idiota eu havia tido.
Eu tinha mais um encontro com Roy naquela noite, e iria esquecer aquilo de vez.

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