26. Anne

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Em um fim de tarde de sábado após aquele dia, eu e Gilbert terminávamos de arrumar a sala ouvindo música alta. Tão alta que quase não ouvimos quando Moody bateu na nossa porta.
Sim, nossa porta. Aos poucos, minhas coisas paravam de ocupar a casa que eu dividia com o meu pai e passaram a ocupar a casa de Gilbert, foi algo tão natural que só notei quando percebi o meu quarto totalmente vazio, desconsiderando as coisas de Davy que estava se hospedando lá.
Eu não precisava mais me preocupar se meu pai se sentiria sozinho, cada vez que eu o via ele estava mais radiante e sorridente, cada dia ele tinha um brilho novo no olhar, e eu sabia quem era a responsável por aquilo.

Abri a porta enquanto Gilbert baixava o volume do som, Moody sorriu sem jeito para mim com Iris no colo.
— Moody!
— Oi, Anne! Desculpa, não sabia que estavam ocupados...
— Na verdade, não estamos mais. O que houve?
— Marcaram uma reunião de última hora no trabalho, parece que tentaram invadir o sistema de computadores da empresa. Sabe como é.
— Não sei não...
— É, faz sentido. Normalmente eu chamaria uma babá, mas foi muito de repente...
— Não precisa falar mais nada, nós podemos tomar conta dessa garotinha! — eu falei, colocando o dedo em sua bochecha, ela escondeu o rosto no ombro de Moody novamente.
— Ela é bem tímida, — ele falou, colocando ela no chão — mas ela já te conhece, vocês vão se dar bem, garanto!
Moody se abaixou na altura dos olhos da menina e segurou suas mãos, falando que ele logo voltaria e que ele a amava, era uma cena de derreter o coração de qualquer um. Moody beijou a testa da filha e me entregou uma mochilinha lilás.
— Obrigado, Anne! De verdade, fico te devendo uma. Tchau, filha! — ele se virou e foi embora.
Estendi a mão para a menina, a convidando para entrar. Ela pegou na minha mão com certa desconfiança e me acompanhou até a sala.
— Amor, temos visita — eu disse.
— Quem tá a...Uau! — ele pareceu assustado.
— É a Iris, filha do Moody. O que foi?
— Ainda me assusta um pouco. A semelhança delas, sabe?
A menina sentou no sofá e observou enquanto eu e Gilbert conversávamos.
— Como a gente pode entreter ela? — Gilbert perguntou.
— Não sei. O que a gente fazia quando era criança?
— Brigava, Anne. A gente brigava.
— Isso é verdade. Mas o que a gente faz agora?
— Um filme, talvez?
— Você é um gênio! Princesa, você quer assistir um filme?
A menina, muito tímida, apenas assentiu com a cabeça. Se eu me concentrasse bastante em seus olhos azul—anis, eu conseguiria ver Ruby sentada naquele sofá.
— Que filme você quer assistir?
Ela ergueu os ombros em sinal de "tanto faz". Abri a parte infantil da Netflix e fui passando pelos filmes, perguntando "esse?" Há cada um. Ela negou com a cabeça até chegar em "Hotel Transilvânia".
— Ela tem bom gosto — Gilbert riu e me convidou com os olhos para o outro lado da sala.

— Acho que a gente consegue conversar agora que você não pode me calar pulando em cima de mim — ele falou em tom de brincadeira, mas eu sabia que estava falando sério.
— Sobre o que você quer conversar, bem?
— Sobre nós, sobre o que a gente quer, sobre o que vai ser daqui pra frente em relação a você e eu... Resumindo, nosso futuro.
— Não sei se quero falar disso.
— Por que?
— Estamos em um momento tão bom! Tenho medo que nossos ideais de futuro não sejam compatíveis e que acabe nos desentendendo.
— Anne... — em seus lábios havia um sorriso, a impressão que eu tinha é que aquele sorriso nunca havia saído dali — Sabe o que eu quero?
Neguei com a cabeça.
— Quero o que você quiser e achar melhor para nós dois. Se quiser colocar uma muda de roupa pra cada um de nós em uma mochila e sair conhecendo o mundo, eu topo. Se quiser assinar um papel que diga que pertencemos um ao outro, eu topo. Só me fala o que você quer pra eu saber o que a gente quer, e independente do que seja, ainda vou te amar de forma imensurável.
Eu sabia que eu estava sorrindo, mas a forma que ele se dirigia a mim deixava minhas bochechas dormentes.
— Quer mesmo saber?
— Com certeza.
— Quero viver tudo que meus pais viveram. Um pedido de casamento super romântico, um casamento do jeito que eles sonharam, uma família com um filho, ou dois... Se não for um problema pra você, é claro.
— Tá brincando? É tudo que eu sempre sonhei viver ao seu lado!
— Acho que nunca imaginei você como pai, Gil.
— Então acho melhor começar a me imaginar assim daqui pra frente. E quem sabe um dia essa história de pôr roupas em uma mochila e sair sem rumo não venha a calhar?
— Então é isso que a gente quer? — sorri para ele.
— É isso que a gente quer! E só pra você saber... Você é meu tchan.— ele me deu um beijo rápido.

Voltamos para perto da menina, sentamos um em cada lado, deixando ela entre nós. O filme se aproximava no final quando Gilbert deixou a sala para tomar um banho, a ideia de ficar sozinha com ela sem ter ideia de como ocupar uma criança me deu uma ansiedade antecipada.
Os créditos subiram pela tela, depois de algumas horas juntas, ela já havia se tornado mais desinibida. Ela desceu do sofá e foi até a sua bolsa que estava perto da porta.
— O que você vai fazer, Íris?
— Meu pai botou uma bolacha pa mim aqui dento. — ela falava de um jeito infantil e particularmente muito fofo — Você pode pegar pa mim?

Olhei o horário no relógio de parede da sala, não me toquei que já se aproximava da hora do jantar e que crianças também sentem fome.
— O que você acha da gente ir pra cozinha e fazer alguma coisa pra nós e pro tio Gil?
— Você sabe cozinhá? — ela perguntou, botando o dedo na covinha do seu queixo.
— Confia na tia Anne.
Fui até a cozinha escutando seus passinhos descalços atrás de mim, dei play em qualquer playlist do Spotify e comecei a mexer nos armários, pensando o que eu poderia fazer.
Eu cantarolava "Stand by me" enquanto cortava um tomate no balcão quando olhei para baixo e vi Iris dançando sem jeito como se tivesse esquecido que eu estava ali.

Me aproximei dela, começando a entrar em seu ritmo aos poucos. Obviamente, apenas eu sabia a letra da música, e apenas eu estava cantando ela até Gilbert voltar na cozinha, já na mesma sintonia que nós duas. Gilbert pegou Iris no colo e dançou com ela pela cozinha, a erguendo e levantando seus braços, os dois giravam e riam de uma forma tão bonitinha que eu precisei parar o que estava fazendo para os observar.
Nós três rimos quando a música acabou e a menina gritou:
— De novo!
— Vamos fazer uma pausa na pista de dança! — Gilbert brincou, colocando a menina no chão e vindo em direção a mim, me abraçando por trás — Precisa de ajuda, amor?
— Não, eu dou conta dessa tarefa difícil e quase impossível. Além do mais, você não sabe cozinhar.
— O que?! — ele forçou uma expressão de ofendido, fazendo Iris rir — Vou provar que você está errada! Eu e a minha ajudante vamos fazer os melhores biscoitos do mundo e não vamos te dar nenhum!
Os dois começaram a sujar toda a cozinha com farinha e açúcar, era uma cena genuinamente fofa.
— Pode sujar à vontade, o tio Gilbert vai limpar tudo depois! — brinquei com eles.

Depois que jantamos, Gilbert sentou no chão da sala porque a menina insistiu que queria que ele penteasse o cabelo dela. Me assustei quando uma borboleta entrou voando pela janela.
— Olha, uma buboleta!
— Buboleta? —Gilbert riu.
— Uhum!

A borboleta me causou arrepios e me colocou em uma espiral de pensamentos que me distrairam. Ouvi batidas na porta e soube que era Moody.
— Espera aí, daqui a pouco você leva ela, preciso falar com ele.
Me levantei e fui até a porta, saindo um pouco e deixando ela entreaberta atrás de mim.
— Desculpa a demora, Anne.
— Tudo bem! Mal vimos o tempo passar, ela é uma ótima menina.
— Eu sei...
— Moody, preciso te perguntar uma coisa.
— O que?
— A Ruby conheceu a Iris? — a pergunta não o abalou, o que me causou alívio.
— Sim, ela amava essa menina.
— É que... Elas são muito parecidas!
— A mãe da Iris se chamava Julietta Gillis, elas eram primas distantes... Distantes em questão de parentesco, na verdade elas eram muito amigas. Julietta "cuidava"— ele gesticulou as aspas — da Iris sozinha, sem apoio de ninguém da família além de Ruby. Uns meses depois de perder ela, eu descobri que Julietta estava negligenciando a própria filha, deixando ela sozinha por dias e pagando alguém que só aparecia duas vezes para dar comida pra ela. Eu fiquei imaginando o que a Ruby faria e então fiz.
— Caramba... Eu... Eu tô sem palavras.

Gilbert e Iris passaram pela porta, ela tinha duas trancinhas penduradas atrás das orelhas que eu não lembrava de estarem ali antes.
— Olha pai, olha o que o tio Gil fez! — ela falou correndo para os braços do pai.
— Você está linda, borboletinha.
— Borboletinha? — perguntei. Não era possível, tudo estava se ligando, fazendo sentido e perdendo ao mesmo tempo.
— É um apelido que Ruby deu para ela. — Moody falou — Enfim, boa noite Anne e Gilbert. Obrigado de verdade.
Moody atravessou a rua e entrou na sua casa me deixando com um mar de sensações. Eu não sabia nada sobre o que acontece com as nossas promessas depois que morremos, mas de um jeito ou de outro, Ruby voltou como uma borboleta.

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