33. Anne

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Já se aproximavam das 11 da noite e eu adormecia ao som da voz de Gilbert. Parece crueldade, eu sei, mas a voz dele me acalmava a ponto de me fazer dormir profundamente.

— Então, Nathalie e Winifred vão ser minhas madrinhas. Pensei em chamar Moody também mas não sei quem o acompanharia, acha que Josie aceitaria? Você chamou a Diana, né? Claro que chamou. Sobre nossa filha —as palavras dele me fizeram sorrir, mesmo com os olhos fechados—, temos que marcar uma consulta pra você, não é? 
A voz dele foi ficando cada vez mais distante, apenas consegui sentir um beijo sobre o meu ombro e poucos instantes depois, caí no sono.

Fui transportada para um cenário que me lembrava o raiar do dia, onde eu andava em direção a Gilbert segurando um buquê de tulipas. Antes mesmo de eu chegar a um altar, um pastor que eu podia jurar já ter visto em algum filme fez uma pergunta.
— Alguém aqui tem algo contra essa união? Fale agora ou cale-se... — sem conseguir terminar de ouvir a frase, um braço me puxou para trás. 
Se aquele braço tinha dono, não pude vê-lo. Me senti observada e impotente diante daquela situação, meu vestido branco se tornava trapo diante de unhas invisíveis que o reduziam a seda a retalho.

Acordei com um choque súbito de que aquilo era um pesadelo, e com a bexiga cheia. Tirei o braço de Gilbert de cima de mim e fui até o banheiro, percebendo que meu short estava manchado com sangue. A sensação agoniante do pesadelo ainda estava instalada em minha mente, e demorei um pouco para cogitar o que aquilo poderia significar. 

Voltei ao quarto em passos rápidos e acendi a luz do quarto, fazendo Gilbert coçar os olhos e cobrir o rosto.
— Levanta, Gilbert.
— Que horas são? Ainda está de noite, eu consigo ver.
— Eu tô sangrando.
— O que?! — ele despertou em um clique.
— Não é muito o suficiente pra se desesperar, mas não é pouco o suficiente pra ignorar. Levanta, por favor.
— Tudo bem, tudo bem. Você tá sentindo alguma coisa? Quer ir ao hospital? Posso ligar para a Winnie, ela entende disso.
— Não sinto nada. Pode ligar, por favor.

Por mais que eu tenha dito que não precisava se desesperar, pude ver as mãos de Gilbert tremendo de longe enquanto ele conversava com Winifred pelo celular e reportava a situação. Também senti quão geladas estavam quando ele veio me abraçar, tentando me tranquilizar.
— Ela disse que é melhor a gente ir, por precaução.
— Tudo bem. 
— Está com medo?
— Não.
Eu estava. Mas eu não queria afirmar aquilo em voz alta para não tornar o medo real. Ele sabia que meu coração estava tomado por temor, e me abraçou até que eu me sentisse segura para irmos. 

***

Já era madrugada, então demoraram alguns minutos até que eu fosse atendida. A sala fria me causava arrepios e tenho certeza que Gilbert sentia dor devida a força que eu apertava sua mão. O aparelho gelado que passeava sob a pele da minha barriga me fazia enrijecer o corpo. 
— Preciso que você fique tranquila, senhorita Shirley — disse a médica. Ela parecia ser nova ali, mas tinha uma expressão simpática.
Tentei relaxar sentindo a mão livre de Gilbert em meu rosto.
— Pelo que eu vejo aqui, está tudo bem. Nada além de um descolamento de placenta. Você vai precisar de bastante repouso e vai fazer uso de alguns medicamentos, mas nada que você precise se preocupar. — ela falava torcendo o nariz, como se não significava grande coisa — Querem ver? 
— Queremos — Gilbert respondeu.
Ela virou o monitor para nós, revelando imagens confusas. Ela apontou na tela, indicando uma pequena mancha na imagem.
— Este aqui é o bebê. Sua idade gestacional é de aproximadamente 8 semanas.

Ela voltou a olhar para a tela, e exibiu uma expressão confusa, seguida por um sorriso. Logo após, pediu algo chamado "monitor fetal" para um assistente que a auxiliava. A sala foi ocupada por um batimento cardíaco forte e alto, que fez a minha mão relaxar sob a de Gilbert, permitindo que a sua circulação voltasse ao normal. Aquele som me lembrava um trem, especificamente os trens que eu pegava para ir para a casa dos meus avós em Green Gables. 

— Querem uma boa notícia?
— Claro! — respondi, sorrindo.
Ela não disse nada, apenas moveu o aparelho para o lado oposto de onde ele estava antes, e um batimento semelhante ao que eu havia escutado antes ressoou.
Nós três trocamos olhares, ainda processando o que aquilo poderia significar.
— São dois. — ela explicou — Parabéns!
— Dois? Tá dizendo que tem dois bebês aqui? — Gilbert falou, quase gaguejando.
Eu havia levado minha mão até a boca, talvez para evitar que meu queixo caísse tanto a ponto de separar do rosto.
— Sim. — ela riu — Essa reação nunca vai perder a graça. É uma gestação bivitelina, portanto, não são gêmeos idênticos.

Voltamos para casa com o coração mais leve, mas ainda incrédulos com a notícia.
— São dois, Anne — ele disse, sentando na beirada da cama.
— Eu sei, você já disse isso 50 vezes. 
— E ainda não parece verdade.
Ele segurava as fotos do ultrassom e admirava como se entendesse alguma coisa em meio aqueles borrões.
— Dediquei muitas horas das últimas semanas procurando casas boas o suficiente pra gente formar nossa família... Acho que vou precisar me esforçar um pouco mais.
— Não precisa de pressa.
— Quero me apressar. Não vejo a hora de decorar um quartinho de amarelo, azul, rosa, verde ou sei lá. Montar berços idênticos que mal vão ser usados e dobrar roupinhas minúsculas.
— Está preparado pra assistir nossas vidas virarem de cabeça para baixo?
— Me preparei pra isso a vida toda.
— A gente não tá muito velho pra eu me sentir como uma adolescente a cada frase sua?
— Não sei, mas sinto que com você eu vou ser jovem pra sempre.

Não importava quanto tempo passasse, ele ainda estaria ali. O poder que ele tinha de me persuadir a sorrir a ponto de deixar minhas bochechas dormentes. Quando eu achava que não haviam mais sensações para serem exploradas, ele me apresentava um mundo novo de emoções que eu nunca cogitei a possibilidade de existirem.
Gilbert Blythe, esse era o efeito que ele tinha em mim.

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