24. Anne

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Acordei ao lado de Gilbert. Não era a primeira vez, mas agora era diferente.
Conferi o horário para ver se não estava atrasada para o trabalho e, por sorte, ainda tinha uma hora sobrando.
Usei boa parte dessa hora para o observar dormindo. Eu estava fascinada pela maneira que seus cílios se moviam e que os cantos da sua boca se curvavam em um pequeno sorriso. Sua respiração era silenciosa e calma, a sua pele quente, em contato com a minha, me causava um conforto de outro mundo.
Era um dia bonito, eu estava com a pessoa que eu amava. Mal percebi, mas talvez eu tenha saído da cama com o pé esquerdo naquela manhã.

Seria um dia longo, me despedi de Gilbert com beijos que não me preocupei em contar, mas todos tinham gosto de café.
O mundo parecia muito claro, tudo brilhava e não havia nenhum peso sobre os meus ombros. Eu nunca me senti tão leve.
As horas passaram voando como minutos, eu mal percebi quando meu expediente acabou.

Tinha combinado com Davy que ele me buscaria no trabalho e jantaríamos com meu pai, Gilbert e Nancy naquela noite, então eu estava o esperando na calçada. Senti meu celular vibrar no bolso e o puxei para ver, mas antes que meus olhos pudessem processar o que a tela me mostrava, uma pessoa passou por mim, puxando meu celular e colocando no bolso da frente de um moletom preto. A pessoa continuou andando calmamente, imaginei que pudesse ser Davy fazendo alguma brincadeirinha comigo, então o segui.
— Ei! — puxei a pessoa pelo braço, fazendo-a se virar para mim.
Um balde imaginário de água fria caiu sobre minha cabeça ao perceber que, na verdade, aquela pessoa era Roy.

— Você pode devolver meu celular, por favor?!
— Anne! Não vai dar nem um oi pro seu velho amigo? Que falta de educação, foi ele que te deixou assim?
— Não brinca, Roy. Me devolve logo isso e vai embora.
— Não... Acho que não quero fazer isso, eu falei que não seria a última vez que ia me ver. Agora eu estou aqui, e você vai continuar andando ao meu lado e não vai fazer nenhum escândalo, tá ouvindo?
Se eu estivesse raciocinando direito, teria corrido naquele momento, mas eu não estava.
— Quem disse que eu vou fazer isso? Você é louco?
— Eu disse — ele colocou o braço ao redor da minha cintura, passando por baixo da minha blusa, encostando nela algo gelado e, certamente, pontiagudo.

Meu sangue gelou, me vi sem opção a não ser segui-lo. Eu não sabia o que aconteceria, e como a adrenalina estava correndo mais do que sangue em minhas veias, perguntei.
— Onde estamos indo? O que você vai fazer? — senti ele pressionando a ponta afiada do objeto desconhecido contra a minha pele, certamente me arranhando.
— Você faz perguntas demais, docinho... Mas eu vou te contar. Estamos indo para a minha casa. Na minha opinião, terminamos de uma maneira muito chata, até parece que nos odiamos!
A frase "Mas eu te odeio." veio até a ponta da minha língua, mas eu lembrei que tinha um objeto perfurante roçando contra a minha cintura, então engoli as palavras de volta enquanto dobrávamos uma rua e ele continuava falando.
— Quero encerrar as coisas entre a gente de uma maneira bem especial. Talvez depois eu deixe você voltar para aquele policialzinho sem sal, ou não.

Minhas mãos tremiam como se eu estivesse exposta ao zero absoluto (n.A: O zero absoluto é a menor temperatura teórica à qual um corpo pode chegar. Na escala termodinâmica de temperatura, graduada em kelvins, o zero absoluto equivale a 0 K, —273,15 ºC, ou, ainda, —459,67 ºF. ) sem nenhuma proteção.
— Por que está fazendo isso? — perguntei.
— Você se negou a ser minha, então não pretendo deixar você pertencer a ninguém. Vou te fazer minha por uns minutos, talvez horas, e depois você só vai pertencer a um buraco no meu quintal.

Congelei, não conseguia mais andar, minhas pernas e braços tremiam e meus olhos estavam encharcados. Ele empurrava minha cintura de forma que a lâmina me tirava sangue e puxava meu braço.
— Vamos, Anne. Não me obrigue a acabar com tudo aqui mesmo e fugir depois.
Eu só conseguia pensar que eu queria me salvar, talvez correr, mas se ele me alcançasse seria em vão. Eu também pensei em Gilbert, talvez aquela manhã tivesse sido a última vez que o vi.
Tentei focar em minha respiração para continuar andando, respiração trêmula e pesada. Roy segurou meu rosto com força e chegou bem perto.
— Você está chamando atenção, acho melhor parar com esse show e começar a andar antes que eu...
A sua expressão foi tomada por dor, a sua lâmina deslizou pela minha pele fazendo um corte superficial, mas longo. Eu estava tão tomada pelo medo que demorei para entender que dois tiros haviam sido disparados em Roy, que agora estava no chão com um ombro e uma perna sangrando.

— Flores nunca erra um alvo.
Uma mulher morena, de cabelos lisos, pele bronzeada e alta se aproximou, virando o corpo no chão de costas e o algemando com os braços para trás. Logo em seguida um grupo de curiosos se amontoou ao redor da situação e fui tomada pelos braços de Gilbert.
— Meu amor, você está bem?! Ele fez alguma coisa com você? Anne, fala comigo!
Ele segurava o meu rosto e olhava nos meus olhos com temor, me encostando contra o seu peito e acariciando meu cabelo. Só consegui envolver o meu braço em seu tronco e molhar a sua blusa com minhas lágrimas.
— E aí, Blythe? Como ela está? — a voz marcante, com um leve sotaque latino se aproximou de nós — Já chamei uma viatura, o garanhão vai ser levado, interrogado, e se Deus quiser, preso.
— Ela ainda não falou nada, sargento. Dá um momento pra gente.
— Não. — interrompi, com a voz trêmula — Ele tava me levando pra casa dele, me ameaçando com... — procurei com os olhos pelo chão e identifiquei o objeto que me aterrorizou nos últimos minutos. Era um estilete, a ponta nova e provavelmente bem amolada me fazia entender que ele havia planejado aquilo — aquilo. E também falou sobre coisas que queria fazer… comigo.
O rosto de Gilbert foi tomado por ódio, ele me soltou e foi em direção a Roy, que ainda estava no chão, me deixando ao lado da morena alta.
Gilbert levantou Roy e o jogou contra a parede de um prédio.
— Era tudo que eu precisava pra matar você, Roy! — ele gemia contra a parede, seu sangue deixava uma mancha molhada no moletom e na calça jeans — Eu só precisava de um motivo, e você me deu vários. Eu deixei passar quando você fez ela chorar, eu deixei muita coisa passar, mas dessa vez você não passa!

Gilbert acertou um soco certeiro no rosto de Roy, agora quatro coisas sangravam: a perna, ombro e agora nariz de Roy, e os nós dos dedos de Gilbert. Ele jogou o seu saco de pancadas humano no chão novamente, e o golpeou enquanto teve forças.
Flores foi para perto e fingiu tentar separar. Não precisava ser um gênio da análise para ver que ela estava amando aquela situação, e eu mais ainda. Gilbert levantou do chão, deixando Roy quase inconsciente, e voltou para perto de mim.
— Vamos pra casa, meu bem, você não precisa mais lidar com mais nada disso por hoje.

O jantar foi cancelado, fiquei na cama com Gilbert pelo resto da noite. Ele passou antisséptico e fez um curativo nos meus ferimentos, eu não precisava dele cuidando de mim, mas eu queria... E como queria.
— Como você soube que tinha alguma coisa errada? — perguntei, deitando a cabeça sobre o seu peito.
— Intuição, talvez. Davy te procurou, te mandou mensagem e você não respondeu. Não te achou, então ele me ligou perguntando por você. Te liguei e você não atendeu, eu estava com a Flores na hora resolvendo algumas coisas para voltar pro trabalho, então fiz ela sair comigo te procurando por todo canto.
— Ainda bem que você me achou, eu não sei... Foi horrível — não contive uma expressão de nojo ao lembrar do rosto dele perto do meu.
— Você não precisa mais pensar, nem falar disso se não quiser. Mas pode ter certeza que você nunca mais vai precisar ver ele. E eu vou em pessoa cuidar para que ele pague bem caro pelo que fez.

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