Senhorzinho

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Uepa mais um hein pessoal

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Era próximo do fim do século, e com isso, vinham novas oportunidades, novas vidas para serem vividas, novos lugares para se conhecer, novas chances para crescer. O mundo era difícil, muitas vezes escuro e sombrio, mas ele sabia muito bem se virar pelas sombras da cidade, pulando de telhado em telhado, se escondendo de rua em rua, se acamando em becos e mais becos, todos prontos para acolhê-lo sem julgamentos, sem dores, sem punições não merecidas.

Foi assim, por entre esses acasos, que encontrou seu lugar numa pequena vila no Rio, aonde as pessoas eram cruas, despidas de valores morais, de roupas e de conhecimentos de uma vida melhor; aonde freiras faziam suas juras, ajudando aos que não queriam ser ajudados, e sofrendo com a pobreza e a desilusão da rua; aonde o comércio era por bares e vielas, debaixo de pontes, ilegal e caro para vender, barato para comprar, se soubesse o que oferecer em troca. E ele, bem, ele tinha muito a oferecer.

Se afeiçoaram dele depressa, loiro, esguio, esperto como era. Davam-lhe prêmios por trabalhos bem-feitos, comida e bebida a vontade, até cama para dormir ele tinha, sempre que queria. As freiras eram as boas almas que lhe davam remédios que ele não queria comprar, e comida nos dias em que faltava, pois viam nele um anjo tentado pelo demônio, sem saberem que ele era o próprio, só que mais bem apessoado, mais gentil, carinhoso, e com cara de cachorro de raça abandonado. Era só cara mesmo. A mente era de um puro vira lata atrás de sua sobrevivência diária.

Foi ali, naquele meio de sofrimento e boa vida, que ele conheceu o garotinho magricela, o menino do orfanato da rua de baixo, o senhorzinho Otávio Mastronelli (era assim que o chamavam, quando começou a frequentar os grupos). Pequeno, magrelo e assustado, foi num beco em meio a noite clara do Rio que Gabriel o viu pela primeira vez, depois de uma enxurrada que quase levou as casas do morro abaixo. Estava voltando para a cama do dia quando ouviu um choro de longe, e seguiu para ver o garoto jogado as traças, ao lado da lata de lixo, todo machucado. Não devia ter mais de quinze anos na época que o conheceu, e Otávio lhe contou depois que tinha doze, bem novinho para andar por aí sozinho. Levou o menino para a casa do dia, não deixando que ninguém encostasse nele, e assegurando favores para que deixassem o garoto tomar um banho e dormir ali mesmo, com ele.

A amizade começou assim, mas o desejo veio dois anos depois.

Era uma sociedade um tanto má, a que viviam. Meninos e homens como ele, bem, não tinham direitos, muito menos podiam aparecer em público, mas os ricos da região tinham tesão de vir procura-los em meio às ruas sujas do subúrbio, depois de brigarem com suas mulheres e deserdarem seus filhos. Não tinha uma noite sequer que Gabriel não tinha dinheiro oferecido em sua cara, aquele dinheiro que cheirava a pão fresco e uma cama confortável e um banho quente, e até mesmo um presente, se possível, para alguns alguéns especiais.

Dinheiro esse que ele não guardava, afinal, na noite seguinte teria as mesmas notas esfregadas em seu rosto. Aproveitava o que podia, e curtia com os amigos nos botecos da noite, lugares em que podiam ser eles mesmos sem o medo de serem atacados, ou de serem escolhidos. Ali, fumavam e bebiam o quanto queriam, riam e se tocavam a vontade, tinham tudo do bom e do melhor, e eram protegidos da sociedade suja do lado de fora.

Era para esses lugares que ele levava Otávio, quando o senhorzinho saía as escondidas do orfanato e o procurava pelas ruas escuras.

Bebidas e conversas a fora eram o remédio perfeito para as dores do mocinho, que sempre aparecia com um olho roxo, um braço enfaixado, uma perna ralada. Parecia que não se cuidava, mas Otávio explicava que só se defendia, dos moleques da rua, do orfanato, da escola, de todos os que via. Gabriel não era chegado em uma briga, mas via em Otávio aquele brilho de coragem que não via em si mesmo. Algo que realmente o fazia diferente do resto deles, daquele mundo de gente sem propósito. Ele admirava aquilo, e via em si mesmo um novo sentimento crescer, uma coragem estranha para dizer 'não'. Era algo que o senhorzinho trazia, e cada vez mais, cada dia mais.

Seus amigos diziam que aquilo traria problemas, mas Gabriel não se deixou levar por seus concelhos idiotas (apesar de que muito corretos, ele descobriu mais tarde). Se deixou afeiçoar pelo garoto mais novo, que de inocente não tinha nada, e sabia bem o que queria. A relação de amizade evoluiu aos poucos, mas Gabriel se deixou levar pelo encanto e tomou Otávio debaixo de suas asas, não querendo que ele sofresse o que ele próprio tinha sofrido nas ruas. Ainda assim, não dedicava sua vida curta ao menino: tinha planos, ideias, vontades, e não deixaria que essas se fossem por conta de um menino qualquer.

Ainda que fosse um anjinho caído do céu.

O primeiro beijo foi algo muito estranho, nada natural. Os dois estavam cansados depois de correrem da polícia, e riam sem parar da situação, deitados sobre a cama que Gabriel tinha arranjado para aquela noite. Eram como dois idiotas, e ao se olharem, aquela sensação na barriga que vinha de vez em quando encheu Gabriel de dúvidas e vontades, algo que reservava para outros, e não para Otávio, seu senhorzinho. Mas o garoto não tinha essas mesmas rédeas, e se aproximou, tomando seus lábios em um beijo desengonçado como tudo o que fazia, mas quente, e bom, que fez Gabriel corar pela primeira vez em muito tempo.

Otávio era pequeno, doce, gentil, e aquele pequeno gesto gritava ao mundo sua verdadeira natureza, algo que nem Gabriel em toda sua experiencia de vida tinha coragem de fazer.

Ao se afastarem, os olhos do garoto brilhavam e um sorriso aparecia em seu rosto, e Gabriel não pôde deixar de retribui-lo, tomando seu rosto em suas mãos e o beijando de verdade dessa vez. A verdade era que Otávio lhe fazia bem, muito bem, mais do que seus amigos, que suas noites, que a vida que levava no Rio. Era como se ali, escondidos, pudessem ser quem eram, sem medos ou demonstrações de afeto que não lhe agradavam nem um pouco. Otávio era novo, acreditava no amor, na vida, era de uma certa forma inocente das durezas do mundo, algo que Gabriel tinha trabalhado para manter, e aquela noite, aquele beijo, significava exatamente isso.

Como não se apaixonar por uma alma tão pura?

E como fazer para não a destruir?

Quando Otávio lhe disse que tinha contado tudo à uma noviça do orfanato, Gabriel sentiu orgulho. Claro, estava bêbado, tinha acabado de conseguir dinheiro suficiente para as roupas novas que queria, e estava feliz da vida, tendo seu Otávio ao seu lado, apesar de machucado e triste, mas nunca abatido. O beijou como se fosse a última vez, e a primeira, e tudo mais, sorrindo contra seus lábios e rindo enquanto Otávio se aninhava contra ele, o puxando para perto, com uma certeza que não deveria existir em alguém tão novo. Mas Gabriel se deixou levar, tomando mais bebida, oferecendo-a para Otávio, e deixando que tudo acontecesse o mais naturalmente possível, tomando aquele garoto órfão que de alguma maneira tinha entrado em seu coração nos poucos anos que se conheciam e se decidindo que nada seria melhor do que passar a vida com ele.

O tomou para si com juras de amor infinito, e ao adormecer, sonhou em sair pelos campos de flores da europa que via nos livros e montar um piquenique com Otávio, aonde os dois podiam se beijar e segurar suas mãos sem que ninguém os atacasse.

Mas ao acordar, e ver o garoto ali, ao seu lado, dormindo profundamente, sabia que aquela vida não era para si. Abandonar o que tinha conquistado por um amor que poderia se acabar, por um garoto que não tinha certeza de nada... não era para aquilo que tinha sobrevivido todo aquele tempo na rua. Não, ele era melhor que aquilo, e deixar Otávio ali, com um bilhete e mais nada, não lhe doeu metade do que achava que faria.

Seu coração ainda não estava certo sobre o rumo que tomaria, mas Otávio, naquela noite, não era uma opção.

Deixá-lo era uma jogada inteligente, ou ao menos era o que Gabriel dizia para si mesmo.

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- N-n-não, Otávio est-está de folga – o homem a sua frente respondeu, fazendo Gabriel assentir. – Posso dei-deixar um bi-bi-bilhete, se quiser.

- Por favor – ele assentiu, se aproximando da mesa e pegando o papel e o lápis oferecido. – Diga-lhe para me encontrar assim que possível, é uma surpresa, não diga meu nome sim? Nós fomos amigos quando crianças, acho que ele não deve se lembrar, o senhor faria esse favor?

- C-c-claro – Randolfo assentiu, tomando o bilhete e colocando no bolso da farda. – Mas t-talvez de-de-demore um pouco.

- Não há pressa, tenho muito o que fazer. Passar bem, capitão – Gabriel fez uma pequena reverência e saiu da sala, se encaminhando para a delegacia para falar com seu novo cliente, Virgílio Pricelli.

Pensando, claro, em seu senhorzinho. 

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⏰ Última atualização: Apr 16, 2021 ⏰

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