Capítulo 1

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A garota não conseguia se lembrar do próprio nome.

Não era isso que vinha em sua mente. Ela se lembrava da escuridão e do cheiro podre de corpos em decomposição. Lembrava-se da sensação de sangue nas roupas e de como os trapos que vestia pesavam no corpo úmido e grudento.

Mas quando foi puxada para fora daquela cela, não conseguiu se lembrar do próprio nome.

Não que tenha pensado muito a respeito — não teve tempo pra isso. Quando os guardas abriram sua cela naquela tarde, a surpresa de ser chamada para fora em vez de fodida foi demais para que ela se importasse com detalhes. E ficar em pé, andar. Sua cela era pequena demais para que conseguisse dar mais que cinco passos, e ser arrastada pelos corredores da prisão da Ilha foi como se seus músculos funcionassem novamente pela primeira vez, acordando os outros ossos, esticando sua pele e fazendo com que cada parte de seu corpo reclamasse e se contorcesse.

Não sabia para onde estava sendo levada. Não se importava.

Mal conseguiu ficar surpresa ao ser enxotada em uma sala junto com outros doze guardas. Dois soldados alados em armadura e dois feéricos esperavam por ela. Conversar, eles queriam. Barganhar.

Não ouviu a proposta, mas se pegou concordando com os termos. Estava fraca demais para pensar. Quanto tempo havia se passado?

Não era como se alguma coisa importasse.

Ao ser acompanhada para fora daquela construção horrível de pedra, cedeu à fraqueza e à dor. Envolta em sombras e escuridão, sequer sabia se havia morrido.

Quando acordou, a dor havia passado.

Recordando-se da sensação do chão melado de sangue, fezes, urina e vômito, a garota entendeu que algo havia mudado quando sentiu o tecido macio dos travesseiros sob sua cabeça. Seus músculos endureceram, como se sentisse medo. Suas veias vibraram com algum instinto primitivo, reclamando de sua inércia, mandando que ela fizesse algo.

Sentou-se e levou a mão à coxa, procurando por algo que não sabia o que era. Sua mente gritou em alerta, adrenalina percorreu seu sangue e ela se levantou em um salto da cama.

Seu corpo, contudo, não acompanhou seus instintos, e a fraqueza das pernas derrubou-a no chão. Ela tentou ficar em pé, mas sua visão revezava entre a lucidez e a escuridão completa, totalmente sem forças. Largada no chão, olhou em volta. Estava em um quarto amplo e bem mobiliado, com amplas janelas voltadas para as montanhas. As cortinas balançavam conforme o vento, deixando à mostra o céu limpo e cheio de nuvens. Era a primeira vez em muito tempo que via a luz do sol. Seus olhos entenderam imediatamente, e ela piscou e escondeu o rosto com a dor nas retinas.

Um grunhido surpreso escapou de sua boca, completa confusão e medo. Sua cabeça não parava de se perguntar — o que está acontecendo? O que é isso?

Arrastou-se até o banheiro, tão elegante quanto o restante do quarto, e fez força com as mãos sobre a pia para se colocar em pé, debruçando-se sobre a pedra.

Uma fêmea a encarou no espelho. Trajava um vestido de linho branco, solto desde o busto em uma saia longa. Um par de alças finas contornavam seu ombro, e parte de seu braço estava exposta até uma outra faixa de tecido cobrir seu antebraço a partir do cotovelo. A parte descoberta era uma tela para cicatrizes de todos os tipos — algumas piores que as outras. Hematomas cobriam parte da pele.

O rosto era o mais assustador. Imaginou que um dia teria sido bonita — com um par de olhos azuis escuros acinzentados e frios. Estavam vazios, no entanto. Caídos. Bolsas roxas contornavam-nos, pintadas como tinta na pele fantasmagórica. As maçãs do rosto eram altas, os ossos saltados marcavam a mandíbula forte. As clavículas pareciam pontudas na pele macilenta do colo, também coberta por aquelas linhas claras de antigos ferimentos cicatrizados. Ela puxou o cabelo escuro ondulado para cobrir os ombros daquela visão horrível, e fios desprenderam-se da cabeça e escaparam-na pelos dedos.

Corte de Sombras e TempestadesOnde histórias criam vida. Descubra agora