Capítulo 12

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Ela podia sentir.

Diferentemente dos outros sonhos, aquele Aeleva tinha consciência de que se tratava de uma memória — e de que estava sonhando. Ainda que vívido, e que aquela Aeleva fosse a Aeleva de anos atrás, ela tinha noção do que estava acontecendo. Era quase real. E ela podia sentir, no fundo de sua mente, que alguém pedia passagem.

Aeleva estava sozinha dessa vez, em pé sobre ruínas. Corpos mortos se espalhavam por todo lado, sangue manchava as pedras e construções caídas. Olhos vazios a encaravam para onde fosse que ela olhasse, tantas mortes recentes que sequer se podia contar. O céu chacoalhava em tempestade, a chuva escorria pelo chão como tinta vermelha, tingindo o mar de escarlate. A cor das mãos de Aeleva. A cor de suas roupas.

Seu rosto estava melado, e sabia que era tanto de sangue quanto lágrimas. Os gritos ensurdecedores também eram dela, o peito doía e ela mal conseguia respirar. Estava exausta e dolorida. Seus músculos queimavam.

Aquele era o fim do mundo. Todos estavam mortos.

Aeleva andou pelas ruínas. Reconhecia aqueles rostos, mesmo que a Aeleva do presente não soubesse quem eram. A Aeleva dos sonhos sabia o nome de cada um deles, e dos que ela não sabia, sentia-se culpada pela ignorância.

Abaixou-se ao lado de um deles. Fawn. A Aeleva do sonho lembrava-se da garota de cabelos vermelhos e olhos castanhos. Nunca se deram bem. Era comum que Aeleva não se desse bem com os outros, e também era comum que pensasse que morreriam logo. Todos eles morriam.

Não dessa forma.

— Sinto muito — pediu Aeleva, em soluços.

Ela esticou a mão para fechar os olhos de Fawn, e levou um susto quando a garota agarrou seu pulso. Reprimiu um grito, horror se espalhando por seu corpo.

— Deixe-me entrar, querida Eva.

As pedras chacoalharam. Aeleva tirou a adaga de sua bainha e cortou a mão de Fawn fora, horrorizada, colocando-se em pé. Outra mão agarrou sua perna esquerda, e alguém lhe tocou a coxa. Aeleva olhou ao redor, sem conseguir respirar. Os mortos se arrastavam até ela, puxando-na, agarrando-se às suas roupas.

Aeleva tentou fugir, mas eram muitos. Foi derrubada no chão, e em instantes os corpos lhe cobriram. Tentou gritar, mas tapavam sua boca. Taparam o céu. Aeleva estava afundando em mortos, desesperadamente tentando escapar, o ar cada vez mais rarefeito...

Aeleva acordou.

Suor ensopava seu rosto e seu pijama quando ela se arrastou para fora do sofá até o banheiro, sem tempo para entender onde estava. Debruçou-se no vaso sanitário, e vomitou. Não havia comida em
seu estômago para ser colocada para fora, e cada ânsia era uma faca afiada em sua garganta, expelindo tudo e qualquer coisa que encontrasse. Seu corpo tremia violentamente, e ela sabia que estava chorando. Queria gritar. Estava com tanto
medo. Tanta raiva. Tão perdida.

Inclinou-se sobre o vaso com uma ânsia vazia — tudo que tinha dentro dela já havia sido expelido —, e fechou os olhos, deixando que as lágrimas quentes lavassem seu rosto. Meu nome é Aeleva. Tenho mais de mil anos. Sou amiga de March e Lolla.

Sou uma assassina. Sou um monstro. Eu deveria estar morta. Durendal vai me matar.

Estava reunido coragem para se levantar quando sentiu a presença de alguém na porta. Seu corpo trêmulo respondeu antes que sua mente processasse qualquer coisa: sentada próxima ao vaso sanitário, Aeleva girou as pernas e chutou os joelhos da figura diante dela, derrubando-a no chão. Rolou pelo carpete um segundo depois, montando sobre o corpo e apertando-lhe a garganta com o cotovelo.

Corte de Sombras e TempestadesOnde histórias criam vida. Descubra agora