Capítulo 47

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Aeleva sentia como se não fosse feita de nada.

Não tinha memórias de sua vida passada, e certamente não tinha memórias de sua vida presente.

Passara as últimas horas apoiada no parapeito da Casa do Vento, observando com horror o exército de mortos tomar Velaris sob o céu noturno ensolarado, ouvindo os gritos e os lamentos e os choros enquanto tentava não vomitar de nojo e raiva. Gwyn e Emerie estiveram com ela, cada qual armada e coberta por couro illyriano, e as demais Valquírias fizeram guarda nas portas e nas janelas. Aeleva ficara surpresa por nenhuma recuar com medo. Se não fosse pelas ordens de Nestha, Emerie e Gwyn teriam descido às ruas, e muitas das guerreiras teriam ido com elas.

— Faria de tudo para proteger a cidade que eu amo — dissera Gwyn a ela, uma fita branca amarrada ao redor de seus cabelos — Não importa se vomitaria de medo a cada esquina.

Aeleva ficara assombrada com sua coragem, com a coragem de todas elas. Então prometera treina-las caso a cidade sobrevivesse, e fizera isso porque precisara se agarrar a qualquer coisa que a fizesse acreditar que tudo ficaria bem. Aeleva se jogaria nos braços de Azriel de novo, e treinaria as Valquírias depois da guerra, e se esforçaria para ser uma pessoa melhor com Feyre e Rhys. Diria a Lolla o quanto a irmã era importante em sua vida e como sua memória fora a única coisa que a impedira de saltar da janela de seu quarto nos primeiros dias fora de cativeiro. Faria muitas coisas se os deuses permitissem, se os deuses os salvassem.

Elain e ela também haviam trocado muitos olhares, e Aeleva nunca quisera tanto ter suas memórias de volta. A fêmea sabia muito mais do que dizia saber.

Não soube quantas horas haviam se passado quando sentiu o primeiro puxão no peito e soube que Azriel estava em perigo. O dia já havia amanhecido e ela podia ver a redoma de luz e magia cercando o centro, o exército comprimido contra paredes invisíveis, e de lá de cima Aeleva não podia ver o motivo da comoção. Então o aperto em seu coração ficou mais e mais forte, cada vez mais insuportável, e a raiva, o medo e aquela outra coisa que só as sombras podiam trazer pra ela tomaram conta de todo seu corpo. Seu último pensamento fora que nada, nem mesmo Abaddos, machucaria seu Encantador de Sombras.

A partir dos clarões causados por ela, Aeleva não pensara em mais nada.

— Aeleva?

Alguém falava com ela, Aeleva não sabia dizer quem. Sua cabeça doía, seu corpo todo parecia em chamas, e, incapaz de suportar aquela dor, esvaziou sua mente e deixou tudo ser tomado pelo nada mais uma vez.

Inconsciente ou consciente, ela não sabia dizer. Não teve sonhos nem pesadelos.

— Isso já aconteceu antes? — Rhys, aquele era Rhys.

— Já — a voz de Lolla perfurou seu crânio como uma flecha —, há alguns mil anos atrás, quando Abaddos destruiu nosso Refúgio.

O nome de Abaddos fez seu estômago revirar, seu corpo inteiro tremer.

— Ela se exauriu — Rhys de novo — da última vez que eu me exauri...

Algo quente pressionou seu estômago e se espalhou pela superfície de sua pele como se alguém a tivesse colocado em uma banheira de fogo líquido.

— Aeleva não se exauriu, tem muito mais na manga do que aquilo. Ela vai ficar bem — mas Aeleva não sentiu firmeza na voz de Lolla, tampouco teve forças para procura-la —, você deveria destrancar o Encantador de Sombras daquele quarto e deixa-lo subir.

Azriel. Pelo deuses, como ela o queria ali .

— Ele não está em condições — nem você, Aeleva pensou com raiva, porque a voz do Grão Senhor mais se parecia o muxoxo de um homem com o pé na cova.

Corte de Sombras e TempestadesOnde histórias criam vida. Descubra agora