Regra Número 4:

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🟦 N̶ã̶o̶ ajude em exposições de arte

Era nítido que durante a madrugada havia caído uma chuva bem generosa, mas o sono pesado no qual estava não permitiu que eu acordasse para vê-la. As árvores pingavam pequenas gotículas de água em meus ombros quando passava sob elas e o cheiro de terra molhada inundava minhas narinas enquanto atravessava a praça. Ainda estava cedo, aposto que não passava das oito e eu, em uma manhã fresca de sábado, ao invés de estar ainda na cama, me dirigia apressadamente para a galeria de arte onde minha mãe trabalhava.
Na manhã daquele dia, meu sono foi interrompido pela voz de Pitty em Teto de Vidro, pois o celular estava recebendo ligações. Era minha mãe solicitando, suavemente, porque sabia que tinha me despertado e talvez eu estivesse ainda um pouco atordoada, que fosse ajudá-la na exposição, pois tinha ocorrido um imprevisto que ela me explicou, mas confesso que estava tão embebida em sono que não entendi ou talvez tenha cochilado nessa parte, mas não tem importância, pois lá estava eu diante da galeria, precisava somente aguardar o semáforo para pedestres ficar verde outra vez. Porém, antes que conseguisse esse feito, um motorista completamente sem atenção ou simplesmente sem respeito algum dobrou a esquina jogando a água que estava empoçada no asfalto em minha direção. Eu dei um salto para trás, minha mente funcionou tão rápido nesse momento que até lhe parabenizei por isso, porque por muito pouco a água suja não me deu um banho.
Atravessei a rua grata por não ter me molhado e empurrei a porta de vidro da galeria, mas estava trancada. Só me faltava essa mesmo! Liguei para que minha mãe viesse abrir, mas foi uma outra funcionária que me recebeu e indicou a sala de minha mãe.
- Oi, dona Lívia, seu pedido foi uma ordem, aqui estou! - Disse eu com graça percebendo a preocupação e ansiedade estampadas na face de minha mãe por conta da primeira exposição de arte sob seu comando.
- Que bom, minha filha, a moça que ia ficar na porta recebendo as pessoas tá com o filho doente e disse que não poderia vir... Arhg... Logo hoje!... - Resmungou procurando algo nas gavetas de sua mesa, até que encontrou, após abrir umas duas, a pilha de panfletos que eu teria que entregar para todos que estavam entrando na galeria.
Como ainda faltavam alguns minutos para a abertura do lugar, fiquei vagando por ali, entrei na sala 01 de exposição em que ficavam as pinturas, algumas lindíssimas, outras... Nem tanto. Passei pelo portal em arco e entrei na sala 02 em que estavam, na parede norte-leste diversas fotografias e na sul-oeste lindas esculturas sob luzes escarlate. Fiquei impressionada com as formas e texturas daquelas criações, teria ficado mais tempo olhando-as se não fosse pela mesma funcionária que me recebeu antes, que me pediu para começar o trabalho.
A primeira meia hora ali na porta foi tranquila, aparecia uma ou outra pessoa a qual eu dava as boas vindas e entregava o panfleto com as obras e seus respectivos valores, porém, chegou um momento em que parecia que todos tinham se decidido a entrar juntos, pois eram tantas pessoas que senti meu coração acelerar por medo de não entregar a todos, pois aquele papel tinha sua importância para a exposição. Assim como surgiram, as pessoas também sumiram dentro da galeria, deixando-me novamente em um serviço monótono. Dali da porta conseguia escutar as músicas que tocavam na galeria e bem naquele momento eles haviam trocado a playlist, pois até então só tocara músicas nacionais e agora começa já a segunda em inglês. Em uma coisa eu tinha que concordar, quem estava administrando o som da galeria tinha ótimo gosto musical. Abri um dos folhetos pela quinta vez e percorri as fotografias das obras que estavam ali, quando me dei conta estava cantoralando "Next to Me" que tocava nos auto falantes. Deixei os folhetos de lado e fiquei observando a rua que começava a ter maior fluxo de pessoas passando por conta do horário que subia.
Do outro lado da rua tinha uma praça e alguns pombos ciscavam o chão em busca de migalhas enquanto moradores de rua ainda dormiam ou, pelo menos, tentavam. Acabei dirigindo meu olhar para o imponente prédio antigo pintado de amarelo que se exibia mais a frente, alguns alunos entravam pelos portões gradeados para suas aulas de sábado. Esse era o lugar onde eu estudava, para o qual ia todos os sábados para assistir uma manhã cansativa de aulas, porém, enriquecedora. Mas agora, mal tinha aula durante os dias úteis no Otacílio, meu colégio atual, imagina aos sábados?! Claro que não teria.
Chutei uma pedrinha que tinha sido açoitada na calçada pelo trânsito, devolvendo-a para a rua quando, de repente, levei um susto por causa de uma presença inesperada que falava ao meu lado e isso fez com que alguns papéis escorregasse de minhas mãos.
- Está trabalhando aqui também? - Tinha questionado a voz que me causara o susto. - Te assustei? - Perguntou o homem se agachando ao meu lado para catar os papéis do chão.
- Ah, não, eu que estava distraída mesmo. - Tentei disfarçar, envergonhada. - Não sabia que o senhor vinha.
Ele coçou a cabeça e olhou sob meus ombros. - Eu também não, decidi de última hora, sua mãe me convidou.
- Pois aqui está o seu guia para a exposição, não se assuste com os preços e seja bem-vindo! - Brinquei ao entregar-lhe um de meus panfletos. Meu pai soltou uma risadinha e passou por mim entrando no local. Fiquei feliz por vê-lo na exposição, talvez aquele fosse um sinal de que as coisas ficariam bem e voltariam ao eixo, eu desejava intensamente isso. Não o retorno das brigas, jamais, mas da tranquilidade que tivemos em outros tempos. Com o divórcio passei a ver poucas vezes o meu pai e estava contente também pelo reencontro.
- Bom dia, moça! - A voz surgiu inesperadamente me fazendo voltar para o serviço daquela manhã. Havia um homem diante de mim, ele segurava duas caixas grandes que pareciam pesadas, sua voz estava ofegante. - Vim trazer isso para a exposição. -Tentou explicar entre as caixas.
- Pode entrar. - Permiti. - Mas antes passe na recepção, por favor, e informe.
- Vou sim, obrigado. - Agradeceu enquanto já passava ao meu lado. - É você? - Perguntou. A posição em que se encontrava limpava seu campo de visão e ele conseguia me ver entre as caixas. Estreitei os olhos e reconheci no mesmo instante aqueles cachos em sua cabeça.
- Professor? Oi. - Cumprimentei.
Ele assentiu com o que pareceu ser um sorriso, mas não tenho certeza, pois as caixas voltaram a cobrir seu rosto. Observei enquanto ele entrava e me lembrei do homem no parque, mas vê-lo novamente não me deu certeza alguma se eram as mesmas pessoas.
Franzi o rosto encarando o céu, o sol começava a mostrar que quem mandava ali era ele, inundando todo o ambiente com seus raios. O tempo estava ficando abafado e estar ali fora no sol estava se tornando desagradável, pois minha pele era sensível demais e logo ficaria avermelhada. Estava cogitando largar o meu posto quando minha mãe apareceu e disse que eu estava liberada e que ganharia uma recompensa em breve.
Adentrei a galeria de arte e agradeci silenciosamente pelo ar condicionado que deixava o lugar refrescante. Aquele era o momento de me comportar como uma convidada, apreciadora de arte, não mais a moça da porta. Refiz o caminho de mais cedo e me coloquei a apreciar as telas como faziam as outras pessoas naquele ambiente. Nunca tinha ido há um evento como aquele, tinha visto somente em filmes e achava aquilo de uma elegância só.
Uma mulher alta, magrerrima e bem vestida olhava atentamente para uma tela que representava a ponte e o rio que separa a cidade do estado da Bahia. Era até bonitinha, mas se tratando desse tema, naquela sala tinha melhores.
Fiquei maravilhada pela tela que mostrava três pessoas pulando frevo: duas mulheres e um homem. O fundo do seu cenário era um misto de cores como se houvesse uma multidão desfocada atrás, confetes caiam sobre eles que seguravam suas sombrinhas de frevo. Fui percorrendo tela por tela, apreciando ou pensando mal de cada uma delas, como uma crítica de arte sem instrução, apenas bom senso.
Quando conclui meu tour pelas pinturas, adentrei a sala 02 e logo percebi o professor na parede norte-leste rindo com algumas pessoas a sua volta. Fiquei me questionando se ele seria um dos artistas enquanto observava as fotos de uma vinícola da região, depois de rostos sorridentes de crianças, depois de várias versões do céu e suas cores, até que cheguei às que o professor Benjamin estava próximo.
As fotos daquele quadrante eram diferentes de todas as outra que tinha visto na exposição, para começar estavam com filtro preto e branco, o que nenhuma das outras tinha, além disso, retratava as comunidades ribeirinhas e carentes da região. A qualidade, nitidez e profundidade daquelas fotografias transparecia sentimentos, fazia com que eu me sentisse uma telespectadora presente naqueles lugares.
- Oi novamente, Apenas Alice!- Cumprimentou o professor, se aproximando. Não acreditei que ele continuava a me chamar assim e tudo porque, em uma das aulas, durante a chamada, pedi que me chamasse de apenas Alice, porque não gostava do Maria. - O que achou?
- Oi, só Benjamin. - Brinquei com o nome dele, já que fazia isso com o meu e dei de ombros. - São lindas, apesar da realidade triste.
Ele assentiu e colocou as mãos nos bolsos da calça jeans. - Que bom, são da minha irmã, ela é genial, apesar de chata.
Eu sorri para a tentativa de ser engraçado dele. Mas tinha que concordar, a irmã dele era genial mesmo, pelo menos, na fotografia. Nós conversamos sobre algumas fotos, ele acabou explicando sobre aquelas pessoas e sua comunidade, a realidade difícil deles. Pelo visto, julguei, Benjamin tinha pose de professor em qualquer situação que coubesse. Ele me acompanhou quando caminhei para a parede sul-oeste, agora as esculturas estavam sob uma luz azul e me questionei se a luz colorida não poderia alterar a percepção sobre os objetos. Expostas, estavam duas carrancas bizarras com suas bocas abertas e olhos arregalados, um busto muito bem acabado de Lampião, alguns animais meio desengonçados que provavelmente era proposital e três peças de formas singulares feitas com pedra.
- Essa são lindíssimas! - Comentei encarando as pedras lilases sobrepostas em uma forma indecifrável.
- De tudo isso, você se deteve em um monte de pedras? - Questionou sorrindo. - Por que?
Franzi o cenho, porque eu gostei, ora! - Não sei, só gostei, acho que ficaria bom no meu quarto.
Ele assentiu e se aproximou das carrancas. - Eu gostei dessa, os detalhes, a pintura, está perfeita.
- E colocaria no seu quarto? - Questionei rindo.
- Colocaria, colocaria sim. - Respondeu ele sorrindo. - Dizem que elas espantam espíritos maus, não é? Meu quarto ficaria com a energia espiritual limpa! - Concluiu e me encarou, eu que olhava atentamente para ele, encontrei seus olhos de maneira que julguei íntima, não sei explicar, mas o que lembro foi que sustentei por poucos segundos e desviei, sem graça.
Uma mão tocou meu ombro naquele momento e levei um pequeno susto. Era meu pai que alegava está me procurando. Apresentei meu pai ao professor que trocaram um aperto de mão, rolaram umas palavras gentis e Benjamin se retirou.
- Professor de que mesmo? - Questionou meu pai.
- De história, pai.
- Ah, bom, bom... Então, filha, queria te convidar para jantar lá em casa, pode ser na quinta ou outro dia, você que sabe, mas me avise cedo. Faz um tempinho que a gente não se vê, não quero as coisas assim...
- Tá, claro que eu vou! Estou com saudades do senhor.
Ele abriu um sorriso de ponta a ponta. - Eu também. Então, já vou indo. - e se inclinou para me abraçar. Abraço esse que me fazia uma falta danada que só percebi ali, em seu aconchego.
Fiquei até o fim da exposição, vi que muitas obras tinham sido vendidas e fiquei feliz por isso, tanto pelo reconhecimento dos artistas, mas mais porque isso era bom para minha mãe, ainda mais por aquela ser sua primeira exposição. Tinha sido um momento legal, até, diferente da maioria dos meus dias.

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Como  ̶N̶ã̶o̶  Se Apaixonar Pelo ProfessorOnde histórias criam vida. Descubra agora