A carta

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Meu nome é Solange Campos Lopes. Estou escrevendo essa carta a pedido da minha psiquiatra. Ela acha que seria bom eu botar tudo pra fora, no caso, tudo em linhas, pois tenho dificuldade em expressar o que eu sinto na terapia em grupo.

Minha mãe insistiu tanto nisso, tanto que ela usou o Jake como arma de convencimento, nem sei se essa palavra existe. Estou a dois meses em uma clínica, eu fiquei muito mal depois de tudo o que eu vivi. Passei dias em estado de choque, eu parecia um vegetal, a minha cabeça não raciocinava direito e a minha alma ficava gritando dentro de mim, me implorando para salva-la. Eu não tinha forças, mas estavam todos comigo, meus amigos novos e antigos, meus pais, meus avós e meus parentes próximos. Apesar de todo carinho que recebi, esse exílio foi necessário e hoje estou muito melhor. Fiz algumas amigas aqui na clínica, uma em especial, Camila, que é uma paciente que sofreu violência doméstica. Pensa em uma mulher forte, eu nunca imaginei que seria tão difícil passar por isso, mas mesmo de coração quebrado ela me ajudou.

Eu tomo dois medicamentos por dia, o que é pouco se comparado com os primeiros dias, desde que cheguei aqui. Eu evolui muito, já não tenho crises de pânico, as noites tem sido mais tranquilas, mas a minha médica disse que vou ter que ficar pelo menos mais um mês em observação. Ela acha que eu posso me cortar ou coisa parecida, não é mesmo, Natália? Minha médica dedicada e simpática, que engoliu uma melancia e reclama dos pés inchados devido a gravidez. Eu sinto falta de todo mundo, só posso vê-los uma vez ao mês e não pode vim todo mundo, é um de cada vez. Claro que no primeiro mês veio a minha mãe, nesse segundo mês eu já não sei. Só pedi para que não trouxessem o Samuel, não porque eu não quero vê-lo, mas porque eu não quero que ele me veja assim.

Eu perdi 10 quilos devido a depressão e síndrome do pânico, era difícil de comer. Mas a Camila fica roubando doces das enfermeiras quando elas não estão olhando e me incentivou a comer com ela, durante a madrugada. Desculpe a exposição, amiga. Os dias passam muito lentamente aqui, são dois meses, mas parece que já faz um ano que eu estou aqui. O lado bom disso tudo é que eu voltei a desenhar, com giz de cera porque é proibido entrar canetas e lápis aqui. Foi uma merda, me senti como no maternal de novo, mas com o tempo eu fui aprendendo a rabiscar com eles. Hoje em dia eu até gosto do cheiro do giz, dá vontade de comê-los. Não, Doutora Natália, eu não vou comer nenhum, prometo.

A história que o Jake havia me contado sobre sua mãe, a tal fênix, bom, a minha toma antidepressivos. Cômico, né? Sim, estou tentando voltar a ter bom humor. Como diz a Natália: "Mantenha o bom humor, sinta-se como uma florzinha balançando ao vento. " Não sei o que isso significa, mas tomei como incentivo. O Jake sempre me envia alguns emails, não temos o direito de usar celular, mas uma vez na semana podemos ficar uma hora no computador, com supervisão, é claro. Ele me envia, as vezes, apenas um "bom dia, pronta para a piada de hoje?" e depois me conta uma piada de tiozão, bem sem graça. Ótimo, agora eu estou ficando com o rosto corado. Como vou ler isso em público agora?

As lembranças do Rick não me machucam tanto, na verdade, eu sinto que ele está aqui comigo o tempo todo. Eu comecei a sentir isso depois que se obteve justiça, acredito que ele precisava disso para ficar em paz. Os dois assassinos estão mortos e apesar do Padre Fabiano nos dizer que devemos perdoar essas coisas, eu só sinto uma coisa: "QUEIMEM NO INFERNO, SEUS DESGRAÇADOS!". Com direito a dedo do meio e tudo.
Já me senti muito culpada pelo o que aconteceu, hoje em dia não mais. Já chorei mares, litros, tambores e açudes de lágrimas. Já me desesperei, me acalmei e me desesperei de novo. Tudo isso em menos de um mês. Eu estou cansada disso tudo, quero voltar para casa e sei que só vou poder voltar quando eu estiver pronta e saudável das ideias.

Ah, ontem foi o meu aniversário. Fizeram um bolinho de chocolate, sem vela e comemos em talheres de plástico. A Camila lambeu o prato, tanto que rasgou. Desculpa pela exposição, amiga. Jake me enviou uma cesta de chocolate em minha homenagem, no cartão estava escrito: " Espero que não te dê diarréia. Feliz aniversário. " adivinha só? Não deu diarréia em mim, mas nas duas enfermeiras que cuidam do nosso setor, pois sai distribuindo os bombons da cesta para todo mundo. Minha mãe se bandiou para o lado do Jake e isso me fez pensar uma coisa, que a guerra da independência vai começar e eu espero que eu seja o Dom Pedro da vez.

Bom, acho que é isso. Fiz exatamente o que a Natália me pediu, talvez bem mais do que isso. Já tem duas folhas de carta e espero que ela não me faça ler em público, pois vai ser o discurso mais longo da história. Maior do que o do William Henry Harrison, na pose da presidência dos Estados Unidos. Enfim, estou me recuperando e deixando tudo guardado em caixas mentais, onde nada mais pode me afetar. Espero sair daqui em breve, voltar para os braços da minha família e do meu querido Samuel.

Sem carinho e por obrigação, Sol.

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