A prisão de Júlio

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Leandro caminhava  por aquela rua estranha e pouco iluminada por postes decadentes. Apesar de estar muito bem agasalhado, sentia as mãos geladas. Para esquenta-las, as pôs nos bolsos da jaqueta preta. Sentia tanto frio que podia ver a fumaça que saia da sua boca enquanto respirava com o auxílio dela.
O silêncio pairava no local. Sentia-se tenso por não haver ninguém ao seu redor.
O prédio em que Abner morava não ficava muito longe de onde estacionou o carro. Era um prédio antigo,  pequeno e cinzento, com apenas três andares, desses que não havia elevadores.
Leandro temia ter o carro roubado, mas Abner o garantiu que a rua era segura.
Algumas horas atrás, mas precisamente na manhã daquele dia, quando estava trabalhando na cozinha da sua confeitaria, Martins o avisou que Leandro o aguardava no salão.  A reação de Abner não poderia ser outra, sorriu como um menino e os olhos brilharam de empolgação.
_ Eu não tenho nada contra o Leandro. Até gosto dele. Sempre foi muito gentil conosco quando eu e a sua mãe trabalhávamos no sítio, mas acho muito perigoso você se envolver com ele novamente. Você quase morreu por causa disso, Abner. Sorte que a sua mãe não está aqui. Ela não ia gostar nada disso.
Abner ignorou o padrasto e foi correndo até Leandro. Recebeu-o com um abraço apertado, que Leandro não teve tempo de desviar.
_ É tão bom te ver! Como você está, meu neném?
_ Por favor, não me chame assim.
_ Sinto muito, mas vou ter que te negar esse pedido. Você é tão lindo._ Abner aproximou a boca do ouvido de Leandro e sussurou_ e mama tão bem, que nem tem como eu te chamar de outra forma.
Leandro sentiu a face arder envergonhado, avermelhou-se no mesmo instante. Um arrepio dominou todos os pelos do seu corpo, e uma pulsação rolava entre as suas pernas.
_ Mantenha a compostura, Abner!_ ordenou aparentando braveza._ Eu vim até aqui para falar sobre trabalho e não para ouvir as suas saliências!
_ Você tem toda razão. Não é certo que você ouça essas coisas aqui. Vamos lá no meu escritório para que eu possa te dizer mais saliências com mais privacidade.
O sorriso sacana de Abner deixou Leandro ainda mais desconcertado. Começou a esfregar os braços para tentar aliviar a tensão.
_ Pare com isso, tarado! Bom, nós precisamos resolver algumas coisas sobre o evento. Eu estive uns dias ausente, mas não se preocupe, que hora vou me dedicar de corpo e alma. Quando podemos marcar uma próxima reunião?
_ Bom, agora estou um pouco ocupado. Mas podemos nos vermos mais tarde no meu apartamento.
_ Eu não acho apropriado.
_ Por que não? Eu não posso conversar com você durante o expediente.
_ O seu apartamento é um lugar muito íntimo e não quero esse tipo de intimidade.
_ Ah para, neném. Por muitas vezes, já te vi peladinho, gemendo gostosinho enquanto eu estava dentro de ti. Passar no meu apartamento vai ser fichinha perto dessas intimidades tão profundas que tivemos.
Leandro respirou fundo.
_ Você não tem jeito mesmo né?
_ Não mesmo. Eu sou menino muito malvado. Você me punir?_ Abner mordeu os lábios e fez biquinho em seguida._ Olha, só vamos falar de trabalho. No meu apartamento é mais seguro e sossegado. Ninguém vai nos atrapalhar. E apesar de você ser uma delícia, eu  prometo que não vou te morder. Ah não ser que você queira.
_ Não se atreva que arrebento a sua cara.
_ Uiu!
_ Tudo bem. Eu vou. Mas se comporte.
_ Tá bom, meu neném. Eu vou te passar o endereço.
_ Que horas?
_ Umas oito horas tá bom pra você?
_ Tá sim.

Abner abriu a porta com empolgação para receber Leandro. Sorriu de um jeito gentil, que fez Leandro se recordar do Dimitri por quem se apaixonou.
_ Entre! É tão bom te receber aqui! Só não repare a bagunça. O meu dia hoje foi corrido e nem tive tempo para organizar nada.
Leandro percebeu que o atual apartamento era muito mais modesto que o anterior, muito menor e com pouca mobília. Apesar de haver algumas coisas fora do lugar, o apartamento não estava sujo e nem nenhum caos.
_ Aaaah que fofura!_ Leandro exclamou ao ver uma linda gatinha preta deitada no sofá.
A bichinha se aproximou de Leandro, esfregando a cabeça em sua perna para receber carinho. Leandro a tomou nos braços, sentando no sofá, enquanto a acariciava.
_ Pelo jeito a Eleven gostou de você.
_ Eleven?!
_ Em homenagem a personagem de Stranger things.
_ Ah tá._ Leandro disse sorrindo._ Eu não imaginava que você gostava de animais.
_ Sim. Eu a encontrei ferida nas ruas. Resolvi cuidar dela e hoje é a minha fiel companheira.
Abner observava Leandro distraído admirando e acariciando a gatinha. O cozinheiro sentia o coração preenchido de tanta ternura, que se conteve para não expressa-la em forma de abraço.
_ Como os últimos dias têm sido agitados, não tive tempo para preparar um menu a sua altura. Mas fiz o meu melhor. Espero que goste de cachorro -quente.
_ Não precisava se incomodar, Abner. Eu não vim aqui para comer.
_Ir á casa de um cozinheiro e sair com o estômago vazio é um crime federal. Venha. Me ajude a monta-los.
Leandro o acompanhou até a cozinha, onde teve as narinas invadidas pelo delicioso aroma do molho de salchichas que borbulhava no fogão. Era espesso e brilhante. Somente pelo seu cheiro sedutor despertava apetites até então inexistentes.
Sobre a mesa da cozinha havia pães, uma pequena tigela com purê de batatas amarelinho e um outro com batatas palhas. Ao lado de tudo isso, estava um livro fino entre aberto, intitulado como A hora da estrela, da autora Clarice Lispector.
Abner, orgulhoso, retira a tampa da panela e exibe a sua obra prima sorrindo.
_ Eis aqui o cachorro-quente da Macabéa.
Leandro sentiu algo tão bom vindo do coração, que teve os olhos umedecidos por lágrimas emotivas.
_ Eu não acredito que você fez isso!_ exclamou Leandro com um sorriso radiante que estava em perfeita sintonia com o brilho dos seus olhos.
Abner gostou muito da reação do amado. Mas não compreendia o porquê de tamanha emoção vinda de Leandro.
_ Bom, eu amo um homem culto. E pensei em ler um dos seus livros favoritos. Quero saber tudo sobre você, me tornar especialista em cada coisa que te faz feliz, para te oferecer o melhor. Passei a tarde debruçado neste livro...e vou ser sincero que não entendi bulufas. Mas pelo menos, tive ideia de preparar cachorro-quente.
_ A minha avó! Ela...bom...eu nem sei como dizer. A vovó era apaixonada por literatura e gastronomia. Então, sempre trazia á mesa pratos que eram citados em alguns livros que lia.
Ela era uma grande admiradora da literatura de Clarice Lispector. Então, todas às vezes que eu e os meus primos íamos visitá-la no sítio, ela preparava cachorro-quente e os nomeou de  cachorro-quente da Macabéa.
_ Sério?! Caramba! Eu juro que não sabia disso.
_ Era sempre o mesmo cachorro-quente, preparado do mesmo modo. Mas não enjoava. De tanto repetir a receita, ela chegou à  perfeição. Um dia, eu perguntei quem era essa tal de Macabéa e ela me levou até a biblioteca da casa e me emprestou o livro. Lembro que não consegui parar de ler. Fui arrebatado por essa história tão potente e pelas palavras tão intensas da Clarice, que passei dias absorvido pelo livro.
_ Tá explicado de onde vem a sua inteligência. Pois para entender o que essa mulher escrevia, tem que ser muito crânio mesmo.
_ Segundo a minha avó, as palavras de Clarice Lispector não são para entender e sim para senti-las. Eu nem sei explicar... só sei que sinto.
_ Você é incrível!
_ Não se aproveite da situação para me cantar.
_ Não é uma cantada. É admiração mesmo. Eu fico impressionado com o movimento dos seus belos lábios, tão gentis e sentimentais para dizer coisas tão bonitas. E o incrível é que não é forçado ou presunçoso... é natural. Você é incrível!
Leandro abaixou o olhar envergonhado pelo elogio sincero que recebeu, sentindo uma alegria, que não sentia há tempos.
Foi convidado por Abner a sentar á mesa, onde recheou o pão com todos os alimentos disponíveis e mordeu com gosto, fechando os olhos e gemendo.
_ Huuuum! Que gosto bom! Gosto de saudade e de infância! Me transportou para os tempos em que a minha avó gritava, chamando por mim e por meus primos para lancharmos num fim de tarde de verão. Largavamos as brincadeiras e íamos correndo às pressas. Ela colocava tanto amor em tudo que preparava para nós. Como sinto a sua falta!
_ O amor é melhor tempero a ser posto em qualquer prato.
Leandro concordou com um sorriso, semi cerrando os olhos, animado como um menino.
_ Eu tive uma ideia. Sei que um dos livros do catálago é sobre as poesias de Cora Coralina, que por sinal é uma das suas poetisas favoritas.
Leandro concordou com a cabeça e permaneceu em silêncio, esperando que Abner prosseguisse.
_ Eu criei umas receitas baseadas em algumas das poesias dela.
_ Sério?! Que legal, Abner! Você registrou? Posso ver?_ Leandro perguntou com empolgação.
_ Sim. Eu registrei no meu caderno de receitas de criação. No entanto, não pretendo te mostrar agora. Quero te convidar para uma noite de degustação. Quero que conheça as receitas na prática, tanto você quanto a Patrícia.
_ Isso é muito interessante. Estou muito curioso.
_ Lembrando que a Cora Coralina era doceira. Por isso, além das minhas receitas, vou reproduzir um dos doces dela.
_ Que fantástico, Abner!
Abner ficou feliz ao ver o brilho nos olhos de Leandro.
_ As poesias da Cora Coralina são reconfortantes. Imagino que deva ter criado receitas maravilhosas! Não vejo a hora de exprimenta- las. A propósito, há muitos livros com a temática LGBTQIA+ no catálogo. Então, pensei em dedicarmos um dia exclusivo para a exposição e divulgação desses livros, com os palestrantes e autores. A Patrícia teve a ideia de decoramos com, além da bandeira LGBTQIA+, as bandeiras de cada sexualidade e identidade de gênero e fazermos cartazes explicando cada uma delas.
_ As ideias são ótimas!
_ Sim. Afinal a comunidade é diversificada e mesmo assim muitos de nós não conhecemos  todos os significados de todas as siglas. Por exemplo, há gays cis que não compreendem o que são pessoas não -binárias. E com essa falta de informação, pode gerar preconceito dentro da própria comunidade. Acho importante expandir esse tipo de conhecimento.
_ Eu sei bem como é. Sei o que é sofrer preconceito dentro e fora da comunidade.
_ Uh, é! Por quê?
_ Porque sou bissexual. Para os héteros sou indeciso ou sem vergonha, para muitos da comunidade sou hétero curioso, ou indeciso, ou uma bicha enrustida.
_ Que horror!
_ É a verdade. Se digo que não sou gay, ainda sou taxado de homofóbico. Como se eu não tivesse direito a ter orgulho da minha bissexualidade.
_ Que situação chata. O ruim é que já sofremos tanto preconceito fora da comunidade, que dentro dela deveríamos um acolher o outro.
_ Mas infelizmente nem todos pensam assim.
_ É uma situação muito chata. Sinto muito.
_ Não sinta. Eu não me importo com que pensam de mim.
_ Bom...eu vou te confessar uma coisa. Também já cheguei a duvidar da sua bissexualidade. Não por não acreditar que a bissexualidade não existe... não sou um tolo. Mas por achar que devido a sua profissão, você transava com mulheres por dinheiro. Confesso que mandei mal.
_ A minha ex-profissão. Hoje, sou só um cozinheiro.
_ Você deixou a prostituição?_ Leandro se arrependeu no mesmo instante de ter feito aquela pergunta._ Me desculpe pela indiscrição. Eu não tenho nada a ver isso.
_ Ah, para a gente já se viu nus, já fodemos muito... Já somos bem mais que íntimos. Eu não sou mais garoto de programa. O Dimitri morreu. Agora sou livre para ser o Abner. Meu trabalho é a gastronomia e o meu corpo é só seu.
Leandro não resistiu e caiu na gargalhada.
_ É sério. Do que está rindo?_ Abner perguntou sorrindo.
_ Você? Safado do jeito que é, solteiro... dúvido que a cada dia não entra e sai alguém diferente deste apartamento.
_ Juro pela vida minha mãe que não.
_ Não precisa me jurar nada. Não tenho nenhum compromisso contigo e nem pretendo ter. Faça da sua vida o que bem entender.
_ Eu não sou promíscuo. Era o meu trabalho. Mas quando amo de verdade, posso ser fiel como um cão. E é a você que eu amo. Eu comprei uma cama de casal assim que me mudei pra cá. O seu lado da cama ninguém dorme. Ele tá lá, a sua espera. Até o dia que você se tocar que também me ama e abrir mão desse orgulho bobo.
_ Acho melhor concentrarmos no trabalho.
Leandro parou por instante e olhou para Abner com tristeza.
_Eu preciso te fazer uma pergunta desagradável. Por favor, preciso que me responda e com sinceridade.
_ O que você quiser saber.
_ Você amou o Júlio?
Abner respirou fundo, pondo o cachorro-quente no prato. Olhou no fundo nos olhos de Leandro e disse:
_ Eu prometi a mim mesmo que nunca mais mentiria para você. Eu confesso que não gosto de falar sobre este assunto, já que tenho muito ódio por aquele homem. Não só pelo que ele fez comigo. Creio que mereci muito, mas por todo mal que ele te causou. Porque você sim, não merecia e não merece nenhuma das sacanagens que aquele pilantra te fez. Mas você merece ter todas as respostas que deseja ter. Por mais que me envergonhe dizer, tenho que ser sincero. Sim, eu o amei...mas não chegava a um milímetro perto do amor que sinto por você.
Leandro permaneceu em silêncio. Não conseguia sentir raiva de Abner, mas um incômodo consigo mesmo.
_ Eu não consigo me perdoar por isso.
_ Você não teve culpa de nada. Ele era o adúltero e eu o safado por ter me envolvido com um homem casado.
_ Você não foi o único. Houveram muitos outros. Eu sabia, sempre soube, mas mesmo assim ficava. Me apegava a sei lá o que...a uma burrice de acreditar que um dia ele ia mudar, que a porra da culpa era minha por não ter sido bom o suficiente pra ele.  Que merda! Por que eu não saí antes?! Por que deixei que a minha vida chegasse aonde chegou?
_ Se perdoe por não saber ontem o que você sabe hoje. Você não merece sofrer pelas vezes que aceitou  aquilo que não merecia. Lembre-se que você foi induzido a agir daquela forma, tanto por ele quanto por pessoas da sua família, que deveriam te dar apoio, mas preferiram pensar no próprio bolso. Júlio agiu da forma mais covarde e cruel que um ser humano pode agir com o outro. Ele cometeu abuso psicológico e te fez acreditar que era culpado por isso.
"Mas você é uma pessoa incrível! Mesmo ele te ferindo por anos, não conseguiu te destruir. Você está vencendo a cada dia sem precisar sujar as mãos. E olha onde você está. Olha onde ele está. Você é amado e admirado. Ele está preso e só. Então, nunca mais se torture ou se culpe pelo que ele fez com você. A culpa é só dele."
Leandro respirou fundo, decidido que não choraria. Ergueu a cabeça.
_ Você tem razão. A culpa é toda dele, ele que carregue o peso e não eu.
_ É assim que se fala.
_ Então, vamos trabalhar?
_ Claro.

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