Abner

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Sopa de feijão branco remete a infância para Abner. Sentia o coração aquecido ao se lembrar da panela fumegante, borbulhando no caldo espesso. O aroma perfumava o ar e abria o seu apetite.

Na primeira colherada sentia o aconchego e o afeto maternal que Lurdes depositava ao cortar os legumes, selecionar os melhores grãos, pensando em oferecer o melhor à família, alimenta-los não só de comida, mas também de amor.

A paixão de Abner pela gastronomia era muito maior do que uma satisfação profissional. Para ele, o ato de cozinhar era fazer poesia para ser degustada.

Desde criança, a cozinha era o seu cômodo favorito da casa. Era um cômodo grande, com armários e mesa rústica, um fogão de seis bocas, um freezer e refrigerador que seus pais ganharam de presente de casamento, a qualidade dos eletrodomésticos era tão boa, que eles nunca precisaram substituir por novas.

Ainda menino, Abner refletia sobre o prazer que uma boa comida causa nas pessoas que ama e quis dominar a arte da culinária para agradar a todos. Contudo, sempre ouvia de Lurdes que cozinha não era lugar para homens, e era proibido de circular por ela enquanto o fogão estivesse ativo.

Ousado, Abner nunca aceitou um não com facilidade. Escondia-se debaixo da mesa para observar como a mãe preparava os alimentos. As escondidas e autodidata, Abner aprendeu muito sobre o preparo de uma comida caseira: sabia qual era a quantidade de água e tempero de cada alimento, o tempo de cozimento e o ponto certo de tudo.

Quando o seu pai não teve forças para vencer a luta contra um câncer de estômago, Abner viu a sua mãe se entregar ao desespero, passando dias trancada no quarto chorando pela eterna ausência do homem que amava. Ele ficou aos cuidados de uma tia, que se hospedara em sua humilde casa, na periferia do Rio de Janeiro.

Lurdes mirava o pôr do sol pela janela do seu quarto. Estava sentada na beira da cama, com as mãos sobre ela. A tristeza castigava o seu coração e saudade se concretizou em forma de lágrimas, que faziam os seus olhos arderem e o seu peito dolorido.

Ouviu a porta de madeira se abrir rangindo. Observou com o coração apertado o seu lindo menino de pele morena e lindos cabelos lisos e negros entrar no quarto segurando um prato de porcelana azul, era o favorito de seu pai.

Ele a olhava de um jeito tão meigo, que ela se sentiu abraçada pela doçura daquele olhar amoroso. Ofereceu a ela as chipas, que estavam no prato.

Lurdes não conseguiu se controlar e desabou no choro novamente. O biscoito de polvilho e queijo era o preferido do seu marido. No primeiro encontro, quando o casal foi ao um circo ele a deu um dos biscoitos preparados pela sua mãe antes de beijá-la. Chipa era a receita que ela sempre fazia quando queria dizer a ele que o amava sem fazer das palavras.

O filho a olhava em silêncio de um jeito angelical, e Lurdes pode ver naquele rostinho traços da herança genética do grande amor da sua vida.

Provou o biscoito. Fechou os olhos, gemendo degustando o prazer daquele sabor especial. Sentia naqueles simples biscoitos o zelo, afeto e o amor que Abner colocou em cada detalhe no processo de preparo.

Lurdes sorriu sentindo-se acolhida. Ver aquele sorriso iluminar o rosto de sua mãe e saber que ele foi o causador fez Abner ter certeza que nasceu para cozinhar.

Dois anos depois de superar a dor da perda do marido, Lurdes abriu as portas do seu coração para a chegada de um novo amor. Conheceu Martins numa tarde chuvosa, enquanto voltava de ônibus para a casa depois de um dia exaustivo de trabalho num restaurante italiano.

Também viúvo, Martins se deixou render pela paixão e um ano depois do primeiro encontro, trocou alianças com ela numa pequena capela. Levando a sua única filha Lorena para viver junto com eles.

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