Flashback última parte

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O solar da amendoeira se erguia solitário entre o jardim imenso e escuro. Estava assim desde a sua fundação, em 1896, e talvez permaneceria por mais longos anos.
O edificio é assobradado, construido de pedras e cal, contendo um bloco único, com cobertura de telhas de barro. O solar abrigou várias gerações dos Pereira Guimarães, sendo o idoso Procópio Pereira o último descendente oficial.
A fachada possui uma arquitetura portuguesa, decorada com azulejos pintados a mão de mesma origem. Tanto as portas principais com duas aberturas, quantos  as janelas possuem esquadrias em madeiras e detalhes em vidros verde e azul.
O acesso principal se faz através da grande varanda, que ocupa o terço central do pavimento térreo da fachada principal, formando um pórtico de acesso. Quatro colunas em ferro fundido sustentam a cobertura pelo bordo externo.
Júlio a observava enquanto entrava pelo portão principal, que o ferro rangia devido ao longo tempo que guardava a casa.

Em seu interior, o palacete parecía ter feito do tempo o seu cativo, mantendo a maioria das mobílias desde o século XIX.  Um silêncio incômodo e uma frieza singular dominava a casa, mesmo que a estação vigente era o verão.
As lâmpadas acesas e alguns eletro domésticos davam uma pitada de modernidade a aquele ambiente arcaico.
Júlio parou para admirar o longo piano de calda feito de madeira escura no centro da sala. Sorriu ao imaginar Leandro sentado diante dele. Fechou os olhos, ouvindo o som da música em sua mente. Essa imagem o trouxe paz. Deslizou a mão sobre o instrumento, sentindo uma estranha sensação que um dia, o presentearia ao seu amado.
_ Pela vestes brancas suponho que seja o enfermeiro.
Júlio se assustou com a voz feminina que o despertou do seu devaneio. Era Marília, uma mulher de meia idade, pele morena, cabelos longos e negros, e que carregava na rosto as feições herdadas pelos seus antepassados indígenas.
Ela secou as mãos no seu avental e o cumprimentou, se apresentando.
_ A essa hora o seu Procópio já está descansando em seus aposentos. Ele costuma dormir com as galinhas, logo após a janta.
Júlio conteve a vontade de rir do nome antiquado do patrão.
Marília o mostrou com detalhes todo o casarão, instruindo que Júlio não circulasse em todos os cômodos, mas somente nos necessários para cuidar do patrão.
_ Ele é muito enjoado. Acha que todos são ladrões.
_ Esta casa é imensa. Ele vive aqui sozinho?
_ Depende.
_ Como assim?
_ Se você se refere sem família, sim. A mulher e o filho morreram num acidente de carro há mais de trinta anos. Desde então, seu Procópio nunca mais se casou. Agora, se você se refere a qualquer tipo de companhia humana, a resposta é não. Eu fico por aqui  quando o seu Procópio está sem enfermeiro, o que sempre ocorre. Quase nenhum fica por muito tempo. É difícil lidar com o temperamento dele.
O uivo do vento ecoava pela casa, deixando Marília com a feição assustada. A mulher fez o sinal da cruz no rosto.
_ Ainda bem que você está aqui. Assim posso voltar para a minha casa. Este lugar me apavora._ a mulher mudou o tom de voz para sussurro._ creio que os fantasmas dos finados ainda habitam aqui.
Júlio ignorou as crendices da mulher, as julgando como tolas. Visualizava os quadros e as esculturas da casa, se perguntando se possuiam algum valor comercial.
O quarto onde ficaria hospedado destoava da casa por ser um dos únicos cômodos modestos do palacete. Com poucos metros quadrados, paredes tingidas de branco, uma janela grande que dava a visão dos fundos da casa, uma cama de solteiro sem graça, coberta por lençol bege e a fronha do travesseiro de mesma cor. Num canto, um armário mogdo de duas portas, onde coloria as suas roupas...nada atraente e deslumbrante como os outros cômodos da casa.
Dormiu bem na primeira noite.
Despertou as seis da manhã, tomou um banho antes de vestir o uniforme branco devidamente limpo e tomar café da manhã.
Na hora exata de medicar o patrão, Júlio bateu em sua porta, levando consigo um carrinho, contendo o farto café da manhã do idoso.
_ Entre._ ordenou seu Procópio, numa voz arrogante e irritada.
Júlio entrou sorrindo, fingindo ser simpático. Quis causar uma primeira boa impressão.
_ Bom dia, senhor.
Procópio era um homem de pele enrugada, cabelos alvos e bem alinhados, tinha expressões amargas, os lábios retorcidos e o nariz empinado. Olhava o enfermeiro como se visse um inseto repugnante.
Ficou a observa-lo em silêncio por alguns segundos.
Júlio se pôs diante do patrão, numa posição respeitosa, ergueu a mão para cumprimentá-lo , ao se apresentar.
_ Me chamo Júlio, sou o novo enfermeiro.
_ Estou vendo. Não sou cego.
A resposta grosseira e o fato de não retribuir o seu cumprimento, fez com Júlio abaixasse a mão, desfazendo, aos poucos, o sorriso.
_ Está na hora do seu remédio.
O enfermeiro virou de costa para o patrão, colocando as gotas do medicamento num copo com água. Não gostou nada da arrogância de Procópio, mas procurou pensar no salário que receberia.
_ Eu sei muito bem quem você é. Sempre procuro obter a ficha completa dos meus funcionários. Não ponho qualquer um dentro da minha casa.
Procópio esboçou um sorriso irritantemente sarcástico.
_ Você é um..._ Procópio abaixou a munheca, com o cotovelo apoiado no braço da cadeira de rodas.
_ O senhor está insinuando alguma coisa?
_ Não estou insinuando nada. Estou a dizer a verdade. Você é um pederasta. É amigado com o filho do doutor Genaro Toledo. Conheço bem aquele tipo, é metido a progressista, a favor da imoralidade... Creio pra mim que é veado igual ao filho... só está no armário. Caso contrário, se  fosse homem de verdade, não apoiaria esse tipo de coisa.
_ Aqui está o seu remédio._ Júlio entregou o copo ao idoso, com uma expressão brava.
_ Sabe que olhando assim pra você, nem parece que é veado. Se passa como homem sem ninguém suspeitar. O que é bom pra você. Eu soube disso antes de te contratar. Eu não ia gostar nada nada de ter uma bichinha saltitando pela casa.
Júlio serviu o café da manhã calado. Engolia a sua raiva pelos comentários homofóbicos de Procópio. Se não precisasse tanto do salário, arrumaria as suas coisas e partiria naquele mesmo instante.
Após auxiliá-lo no banho e pôr a cadeira no jardim, Júlio perguntou se o paciente precisava de mais alguma coisa.
_ Sabe tocar piano?
_ Não, senhor.
_ É um inútil, como todos os outros.
_ O senhor gostaria de...
_ Eu não gostaria de nada! Saia da minha frente!_ Procópio gritou irritado, a presença de Júlio o incomodava muito.
Júlio saiu depressa. Foi para a cozinha, tomar um copo d'água para ajudar a engolir a raiva.

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