Flashback parte 1

86 9 0
                                    

14 de março de 1986, data em que dona Dirce jamais se esquecerá. Até o dia de sua morte carregará consigo a dor da tristeza em ver o corpo de sua irmã ensanguentado no chão da cozinha. Deitado sobre ele, estava o corpo do seu cunhado, que em mãos carregava o revólver que ceifou a sua própria vida e da esposa.
Ciúmes era o motivo que o levou a cometer esses atos horrendos. Donato desconfiava que a esposa o traía com o  seu amigo. Suas crises de ciúmes tornaram a relação insustentável, fazendo com que Sabrina desejasse pôr no fim na relação.  Antes que ela tomasse essa atitude, Donato a matou. Não aceitava que a sua esposa, a qual ele não fazia destinação entre os objetos que possuía, o deixasse.
A traição nunca foi confirmada e nem negada. Permanece como um eterno mistério. A resposta foi levada ao túmulo junto com Sabrina.
O pequeno Júlio foi encontrado trêmulo diante dos corpos dos pais. Vestia apenas uma frauda e fitava a cena macabra horrorizado. O choque emocional o impedia de dizer qualquer palavra e derramar lágrimas.
Dona Dirce o tomou nos braços as pressas, o afastando daquela cena terrível.
O menino permaneceu dias sem pronunciar uma palavra. Devido ao trauma, a sua mente bloqueou o fato e até os dias atuais Júlio não se recorda do horror que presenciou.
Para poupa-lo de tamanho sofrimento, dona Dirce mentiu que os seus pais morreram num acidente de automóvel.
Dona Dirce vivia na solidão desde que seu esposo faleceu vítima de uma cruel leucemia. Como não teve filhos, dona Dirce deu a Júlio o seu amor e cuidado maternal, proporcionando ao sobrinho uma educação amorosa e segura.
Sempre priorizou a educação do pequeno Júlio. Ainda no ensino fundamental um, Júlio despertava a atenção das professoras por ser uma criança dotada de uma inteligencia acima da média da turma. Num exame, foi constato que o seu QI era de 100.
_ Julinho é inteligente demais para estudar nesta escola tão precária. Esse menino tem um futuro brilhante, dona Dirce. A senhora deveria investir mais nele._ disse a professora Ana.
_ Eu adoraria, professora. Se eu pudesse, o meu filho estaria estudando na melhor escola deste país. Mas o meu mísero salário de empregada doméstica não me permite pagar.
A professora Ana lamentava que o talento do menino fosse desperdiçado. Para ajudar, conversou com o padre da sua paróquia, convencendo o religioso que o conseguisse uma bolsa integral para que estudasse na escola que ele dirigia. A professora foi bem sucedida na sua tentativa. E aos dez anos de idade, Júlio daria um passo que mudaria a sua vida para sempre: conviver com pessoas ricas e passaria a desejar com veemência ter o mesmo padrão de vida delas.


O colégio Santa Barbara ficava localizado num prédio  arborizado. Apesar da arquitetura antiga, o colégio se destacava pela alta qualidade de ensino e pela aplicação da tecnologia como auxiliar na aprendizagem dos alunos, o que no ano de 1994 era uma grande novidade para a educação brasileira.
O colégio também era conhecido pelo seu conservadorismo em questão da exigência do bom comportamento dos alunos e por manter a religiosidade presente na vida acadêmica dos discentes.
O uniforme dos meninos era composto por calça xadrez em diferentes tons de azuis, blusa social branca e uma gravata com a mesma estampa da calça. O que mudava para as meninas era a substituição da calça pelas saias, que mediam até os seus joelhos.
As aulas religiosas nunca despertaram o interesse de Júlio. Mesmo muito jovem, não via sentido nas histórias bíblicas e não fazia distinção entre elas e a mitologia greco-romana. Mais tarde, encontrou no ateísmo uma identificação. Não por revolta da igreja, deus ou qualquer ser sobrenatural. Simplemente por não ver sentido na existência dos dois últimos.
Na hora das rezas, Júlio fingia exercer o ritual, quando no entanto tinha pensamentos libidinosos desejando os seus professores e colegas mais bonitos.
Dedicava-se ao máximo aos estudos, sempre obtinha as melhores notas da turma.
Não tinha dificuldades em fazer amizades, o que foi um grande divisor de águas em sua vida. Através dessas amizades conheceu um mundo que o encantou, mas não era possível para ele.
Era sempre convidado para as festas nas mansões dos amigos, onde se deslumbrava com tudo que via. Ouvia os relatos das viagens dos amigos aparentando interesse comum, enquanto por dentro a inveja o corroía a alma.
Mergulhou fundo no desejo de mudar de vida. Já não olhava para a sua vida com a ingenuidade que tinha antes. Naquele momento, passou a repudiar a pobreza que o cercava, detestar o bairro em que vivia, a casa desprovida de conforto, a conta bancária sempre no vermelho e ausência de fartura nas dispensas.
Júlio prometeu a si mesmo que não seria um pobretão para sempre. Sua vida iria mudar para melhor e ele não mediria esforços para isso.
Tinha consciência da sua capacidade nos estudos, e viu neles uma porta de entrada para um novo mundo. Em meios aos livros que lia na biblioteca da escola, em que buscava uma profissão que lhe despertasse interesse, encontrou no curso de Direito o seu objetivo. A princípio, desejava ser juiz, pois o valor  salário desse tipo de profissional o interessava muito.
_ Esse curso é muito caro, meu filho. Faculdade é coisa de rico._ era o que dizia dona Dirce. Ela não o desmotivava com má intenção, apenas repetia o que ouvira a vida inteira. Dona Dirce acreditava na segregação social, que os ricos escolheram os ambientes para habitar e excluíram os pobres, que isso nunca iria mudar.
Júlio não dava ouvidos a tia. Apesar de ama-la, detestava a falta de ambição que havia nela, e culpava a isso o fracasso em que ela viva, ignorando todo o contexto social e a falta de oportunidades para ela.



O outro Onde histórias criam vida. Descubra agora