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  03:34 AM. Acabo de acordar e pelo jeito, não vou mais conseguir dormir. Tiro meu braço de baixo de Lara e sem acordar ela, eu vou até a cozinha. Tudo por aqui está bem escuro e gelado, mas parece que não me incomodo com esse clima. Eu me sento em uma cadeira que estava junto a mesa e bocejo. Fico apenas olhando o escuro do corredor a minha frente, o corredor que levava para a sala. Esta casa tem um cheiro bem diferente. Parece bastante... cera de mel de abelha. O cheiro dessa cera é diferente de qualquer outra e não tem como confundir, mas é um cheiro irritante.

  04:16 AM. A luz de um dos quartos se acende e Carla sai de dentro, acendendo a luz do corredor. Vestida com um pijama azul e branco listrado, ela vem até a cozinha e liga a luz daqui também, fixando seus olhos em mim.
- O que tá fazendo aí?
- Sem sono.
  Ela abre a geladeira, pega uma garrafa de água e senta na minha frente.
- Por que tá sem sono?
- Isso acontece de vez em quando. Não é como se eu soubesse o motivo.
- Entendo. Como está a garota?
- Dormindo.
- Como foi que vocês se conheceram?
- Nos conhecemos na escola, durante um intervalo. Não tem muito o que contar, na verdade. Por que tá acordada tão cedo?
- Só vim tomar água e também, vou ter que acordar daqui a pouco, então não vai adiantar muito em voltar a dormir agora.
- Você mexe com cera de mel de abelha?
- Você percebeu?
- Não tem como confundir esse cheiro.
- Como sabe?
- Onde eu estudava, vimos bastante tipos de arte das aulas práticas, a arte com esse tipo de cera foi a mais fácil de decorar por conta desse cheiro.
- Essa escola deve ser muito boa para ensinar isso. Quer ver algumas das minhas pinturas?
- Claro.
- Então vamos. - Nos levantamos da mesa e sigo ela até uma porta que ficava atrás da cozinha. Ela abre a porta e tinha uma escada que levava para baixo.
- Um porão?
- Seu avô construiu isso, se prevenindo de uma bomba nuclear que nunca chegou a cair.
- Como se algo assim fosse proteger ele.
- Não é? - Descemos as escadas e ela liga a luz, clareando todo o lugar. Aqui em baixo tem um cheiro ainda mais forte dessa cera.
- Não tem problema em deixar a cera exposta daquela forma? Não atrai abelhas?
- Atrai sim, mas só quando deixo a porta aberta, tem vezes que elas ainda conseguem entrar. É só deixar endurecer que elas vão embora. No caso ali já está rigido o bastante para nenhuma delas querer ficar aqui. E bom, muitas delas acabam morrendo também por conta do calor.
  Tem uma mesa com os materias todos em cima. O secador das tintas, os pincéis, o forno elétrico e as placas de madeira. O porão era grande, cerca de quize a vinte metros de largura.
- Você nunca se sentiu mal aqui dentro?
- No início sim, mas dá pra acostumar.
  Ela puxa alguns quadros que estavam do outro lado da mesa. Alguns quadros se pareciam com flores, outros abstratos e outros de pessoas.
- Foi você quem fez os quadros na parede da sala?
- Foi eu mesma. - Ela se senta na cadeira e pego as pinturas da sua mão. - Aqueles eram meus pais. Seus avós, mas já faz tempo desde que eles morreram.
- Como morreram?
- Seu avô tinha problema de respiração e não durou muito até que isso chegasse a ser o motivo de sua morte. - Presto atenção nas pinturas das madeiras e parece que ela presta bastante atenção em cada detalhe, é uma ótima artista. Não que eu tenha bons olhos pra isso, mas ela usa essa arte de forma diferente da qual essa cera é usada originalmente.
- E a sua mãe?
- Ela faleceu por causa de diabete. Era teimosa e mesmo indo ao médico, não parava de comer besteiras, então ela também acabou não aguentando.
- Hm.
- Mas bom, esse é o meu trabalho. Faço encomendas para pessoas e sou boa no que faço.
- Realmente. Você é muito boa com isso. Esses são para vender também?
- Sim. Enquanto os donos não vem buscar, deixo tudo guardado aqui. Você sabe mexer com isso?
- Não. Já tentei fazer uma vez, mas não tenho jeito pra isso.
- Quer aprender?
- Não tem problema nenhum pra você?
- Não. Muito pelo contrário, eu adoraria ensinar isso para alguém, principalmente se for para o meu querido sobrinho. - Ela sorri.
- Por mim tudo bem. Afinal, não tenho nada para fazer nessa semana mesmo.
- Essa semana?
- Eu ia te falar isso mais tarde... Eu não vou passar as férias de verão aqui.
- Vai viajar?
- Sim. - Ela se entristece de repente.
- E quando volta?
- Alguns dias antes de ir a faculdade.
- Tudo bem. Não tem problema em sair com os amigos durante as férias. - Ouço Lara gritar meu nome do lado de fora, parecendo preocupada e perdida. - É melhor você ir lá.
  Subo as escadas de volta para a cozinha e ela me olha, com seus olhos preocupados se desfazendo enquanto vem até mim.
- Onde você tava? - Seguro sua mão e volto para o porão com ela.
- Tudo bem se ela fizer isso também?
- Claro, mas querem fazer agora?
- Algum problema?
- Não querem comer nada antes?
- Estamos sem fome.
- O que vamos fazer?
- Arte.
- Arte?
- É como desenhar, mas com pincel.
- Vocês desenham?
- Uhum.
- Ah... Isso torna as coisas mais fáceis. Então, vamos começar. Vou ligar o forno elétrico e deixar a cera e as tintas esquentando. Você sabe o básico, mas e ela?
- Ela não sabe nada.
- Então, eu vou ir passo por passo com ela enquanto você começa a fazer o seu.
- Certo.

  06:22 AM. Já se passou um bom tempo e ainda não terminei uma única pintura.
- Daqui a meia hora vem mais um cliente para pegar a encomenda, vou ficar lá na frente nesse tempo enquanto vocês terminam, ok?
- Ok.
  Fazer isso não é pra qualquer um, já requer muito da minha paciência e criatividade. A mão de Lara está cheia de tinta e se ela sentisse dor, isso com certeza incomodaria.
- Terminei. - Diz ela, soltando o pincel em cima da mesa, sujando a ponta do nariz de vermelho ao passar a mão no rosto.
- O que você fez?
- Olha só. - Ela me entrega o quadro.
- O que é isso?
- Uma formiga carregando outra formiga.
- Isso não é uma formiga.
- Você que não entende nada de arte moderna.
- Mas por que fez uma formiga carregando outra formiga?
- Porque é engraçado. Imagina só: Uma formiga carrega outra formiga para o formigueiro dizendo para ela "eu vou te almoçar. Você parece deliciosa". - Ela engrossa a voz, deixando ainda mais aleatório. - Não seria engraçado?
- Não.
- Por que? Seria canibalismo?
- Porque isso não faz sentido nenhum.
- Como eu disse, você não entende nada sobre arte.
- Não mesmo.
- E o que você tá fazendo?
- Ainda não sei.
  Dou o quadro para ela e ela observa bem, tentando encontrar uma resposta.
- Parecem prédios, mas também parecem linhas em zig-zag. Isso é uma pintura abstrata?
- Deve ser.
- O seu ainda ficou melhor. Bom, é o esperado né. Você sempre é melhor do que eu em tudo.
- Tem muitas coisas que você pode praticar e ficar melhor do que eu.
- Tipo?
- Tipo... Esportes. Eu não sou bom em esportes. E também, você aprende e memoriza fácil as coisas que eu te ensino.
- Você tambem é assim. Por falar nisso, eu quero que me ensine mais coisas.
- O que você quer aprender?
- Eu li no seu caderno algo relacionado a sociedade. Sabe, política. E todo o sistema da sociedade dos humanos.
- Vai precisar de livros de história e muita paciência para isso. Tem certeza que quer?
- Acho que aprender tudo isso pode ser divertido.
- De pouco em pouco. Não vou focar em ensinar isso pra você em cada detalhe.
- Ah, eu estou com fome.
  Após terminar as pinturas, ficamos na cozinha, comendo uns biscoitos de chocolate que Carla havia feito. A mão de Lara ficou toda marcada pela queimadura das tintas, mas logo vai sumir.
- Quando terminar de comer, vai para o quarto.
- Tá bem. Tem certeza de que não quer comer mais?
- Estou satisfeito.
  Volto para o quarto e o reflexo do sol contra a lâmina do canivete que havia deixado na janela faz o quarto ficar ainda mais claro do que já está. Fecho a porta, pego o canivete de volta e me sento na cama. Tudo mais uma vez, está quieto e tranquilo, como se sempre fosse dessa forma.






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