Capítulo 1

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"Um cardume de estrelas brilhava palidamente por cima de nós, entre as silhuetas das folhas finas e compridas, e aquele céu vibrante parecia tão nu como ela estava, sob o vestido leve. As suas pernas, as suas pernas encantadoramente vivas, não estavam muito unidas, e, quando a minha mão encontrou o que procurava, gravou-se-lhe na face uma expressão sonhadora e misteriosa, em que havia prazer e dor."

Desvio o olhar do livro e observo o dono da biblioteca passar por mim. Ele acena, sério, parecendo focado no que vê na tela do celular. Eu nunca o vi sorrir. 

Acho que ele já me conhece porque passo quase todas as minhas tardes aqui, sentada nesta poltrona ao lado da sessão de fantasia e ficção, longe da cafeteria. Ele passa os olhos por mim e depois para o livro em minhas mãos. Eu não deveria ler isso em público... Aceno de volta um pouco envergonhada.

Griffiths... Não sei seu primeiro nome, só sei que ele é no mínimo extremamente lindo para um homem da sua idade. Alto, magro, músculos firmes, cabelos pretos e olhos azuis pálidos e uma pele tão clara que chega a ser alva.

Cruzo minhas pernas e volto a atenção para o livro.

"...Depois, a minha amada afastava-se e sacudia nervosamente o cabelo, para a seguir se aproximar de novo, sombriamente, e me deixar beber a vida na sua boca aberta, enquanto, com uma generosidade disposta a oferecer-lhe tudo - o coração, a garganta, as entranhas -, eu lhe dava a segurar na mão inexperiente o ceptro da minha paixão..."

Interrompo a leitura. Não. Simplesmente não dá. Esses segundos mais pareceram horas e tudo o que eu consigo pensar são nos olhos azuis de senhor Griffiths que acabou de passar por mim. Minha mente começa a fazer confusão com a cena que eu lia e o rosto dele. Penso detalhadamente nas mãos do dono da biblioteca quando acenou para mim, perfeitamente simétricas. Fecho o livro e me levanto. Não vou conseguir ler aqui, mas tampouco quero ir embora. Não quando sei que ele ainda está por aqui em algum lugar e eu posso vê-lo por mais alguns instantes. Resolvo ir procurar outro livro que possa me interessar pelas infinitas prateleiras desse lugar.

Sei que sr. Griffiths, como gosta de ser chamado, foi em direção a parte de trás da biblioteca, ao arquivo, eu acho. Então vou na direção das prateleiras mais próximas de onde ele pode estar. 'Clássicos da literatura russa', indica a placa na lateral de uma das estantes. Gosto, mas não são os meus preferidos. Conheço alguns, como o exemplar de Lolita que eu seguro agora e lia alguns instantes atrás.

Uma porta se abre à minha esquerda e quem eu procurava sai por ela. Sr. Griffiths me olha e vem em minha direção. Fico completamente imóvel, esqueço de respirar. Finjo ler a sinopse de Lolita e, enquanto isso, ele se aproxima lentamente, postura impecável, passos duros e expressão sombria.

- Lolita... - Sua voz grave e rouca soa. Ele encara o livro de capa dura azul claro. - É difícil encontrar pessoas interessadas em ler hoje em dia. Gosta dos russos?

Ele está falando comigo e eu preciso processar por um segundo o fato de que eu tenho que responder com palavras. 

- É... hum... gosto. - Sr. Griffiths estende o braço e pega o livro que estou segurando. Abre na página em que eu tinha parado de ler. - Eles têm uma característica marcante quando escrevem - Continuo. - Sem contar todo o sofrimento existencial. 

- Mas, e este? Qual seu interesse em histórias de pedófilos? - Pergunta sem ser agressivo, parece apenas curioso.  

Enquanto sr. Griffiths lê, observo o rosto dele, a barba rente a pele  quase imperceptível, o maxilar tão reto e ressaltado que parece de mentira e os cílios longos e tão pretos quanto o cabelo e as sobrancelhas grossas. Ele me pega o observando, olha para o livro e depois olha para mim de novo.

Com amor, Cordélia (Daddy!)Onde histórias criam vida. Descubra agora