Capítulo 35 | Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte

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Cordélia

Ele dorme pacificamente ao meu lado depois da onda da heroína bater. Já eu, não consegui dormir. 

Depois que a maior parte do efeito da droga passou eu me senti caída, sem vida. 

Agora, mais do que nunca, sinto que tudo o que eu preciso é de Tom e a dor não é só por não ter mais ele... é por eu ter me decepcionado mais ainda. Heroína... eu injetei heroína. Essa merda vicia rápido demais. 

Busco a seringa que está jogada na cama entre mim e o homem de olhos negros. Coloco toda minha força e ódio enquanto quebro o recipiente ao meio. Pingos da droga líquida salpicam minha mão e eu sinto vontade lavar minha pele ao mesmo tempo em que desejo lamber, sentir mais uma vez o doce silêncio da droga. 

Não. Eu não quero mais isso. Não quero mais essa vida. Eu só quero ele. Me escuto soluçar e abraço meus joelhos enterrando meu rosto nos meus braços. Quando eu comecei a chorar de novo? Quero gritar até que todas as vozes na minha cabeça se calem. Quero que todos parem de falar comigo. Preciso de silêncio. 

Minha cabeça gira e um soluço esganiçado sai da minha garganta. Eu perdi Tom. Você o afastou como fez com todos, como faz com todos, Cordélia. A culpa é toda minha. Meu corpo treme, meu estômago dói e meus dedos formigam, gelados como os de um defunto.

Nós não fizemos nada, eu e o homem do quarto. Eu não consegui. Não consegui fazer isso com Tom, nem comigo mesma, mas não diminuiu minha dor. Esse mero gesto não silenciou nem uma das vozes que riem do quão fraca eu sou. Está me consumindo. Se eu continuar aqui vou acabar usando de novo e ter uma overdose. Eu sinto meu corpo cada vez mais fraco. Cedendo. 

Reúno toda a força que me resta para levantar o rosto. Observo meu braço, a mancha roxa em volta da picada da agulha e minha visão fica turva, me falta o ar. Mal consigo dobrar meu braço, mas daria tudo para que o silêncio eufórico da heroína me invadisse de novo. 

Finco as unhas na palma da mão e me concentro na dor aguda. Sinto uma urgência para sair daqui. Desse quarto. Sair para longe desse cheiro metálico e sujo da heroína misturada com outras drogas. Preciso me afastar do cheiro e do gosto desse homem, desses lençóis podres, dessa música e desses gemidos. 

Me odeio por ter feito isso comigo mesma ao mesmo tempo em que estou a um passo de fazer de novo, de usar mais. Em meio ao delírio da droga tudo o que vi foi Tom, todos os momentos deliciosos que passei com ele. Um impulso me faz levantar. Não sei para onde vou, mas não quero mais ficar.

Eu tremo de frio ao me levantar da cama, meus dedos roxos perderam o tato. Visto a blusa que o homem desconhecido estava usando antes do calor da droga o apossar. Ele ainda está dormindo quando eu saio.

Abro a porta e me deparo com escuro absoluto. Que tipo de lugar é esse? Me sinto extremamente tonta e parece que tem um martelo batendo na minha cabeça, rápido demais e com força demais. Seguro nas paredes para me guiar e vou seguindo o barulho de música. Para cima. Para cima, Cordélia.

Atrás das paredes por onde eu passo sem enxergar nada, escuto gritos e gemidos, frases de amor e violência sendo ditas em diferentes tons, diferentes ritmos. Volto minha atenção para dentro, para o meu coração que ainda bate por um milagre. Para cima. Presto atenção na minha respiração tentando ignorar os barulhos de prazer ao meu redor que despertam memórias de uma das épocas mais obscuras da minha vida. 

Ignoro o lamento das minhas pernas fracas, o choro preso na garganta. Para cima, Cordélia. 

Sinto que vou desmaiar a qualquer momento. Um passo de cada vez. Andar parece um sacrifício, o esforço que exige das minhas pernas é perturbador. 

Com amor, Cordélia (Daddy!)Onde histórias criam vida. Descubra agora