Capítulo 3

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Pelo menos três horas já passaram desde que eu e senhor Griffiths entramos nessa tal Ala Demetrificada dentro da biblioteca. Passei a primeira hora explorando as paredes de livros e subindo em uma escada para alcançar aqueles que estavam mais acima. Por mais que no acervo tenham vários títulos que eu nunca li, escolho começar com 'Morro dos ventos uivantes'. Eu já o li várias vezes, mas nunca tinha segurado uma edição tão antiga, tão linda. Me pergunto por quantas mãos essa publicação já passou, quantas histórias de amor já ouviu, quantas lágrimas já caíram nas páginas...

Em duas horas já avancei tanto na leitura que começo a sentir os olhos cansados. Em um certo ponto, a história começa a ficar mirabolante, diferente do que eu me lembrava, como por exemplo, não me recordo de Catherine se perder em uma casa mal assombrada com vampiros, mas isso acontece aqui.

Em outra cena, vi o meu próprio reflexo em um espelho grandioso e antigo, salpicado de ferrugem, ainda dentro da casa assustadora que Catherine se perdeu. Quando percebo, eu estou realmente dentro da tal casa. Olho em volta e hesito antes de andar. O lugar é horroroso. Paredes, chão e teto são de madeira tão apodrecida que pedaços caem sobre meus cabelos e estalam sob meus pés. Viro-me de costas para o espelho e então sinto uma mão em meu ombro. Devagar e amedrontada, me volto para o toque e encaro os olhos azuis de senhor Griffiths. Ele me guia em sua direção com uma leveza determinada que só ele tem, me puxa para perto do seu corpo e me beija. No entanto, não sinto o gosto dos lábios dele, nem o cheiro de sua pele, ou o seu calor. O que está acontecendo? Eu me afasto de Griffiths e ele me chama, suplicante, como se doesse ver eu me afastar.

- Cordélia... - Ele me olha com uma expressão de dor  - Cordélia, por favor, não vá. - Sua voz começa a ficar mais alta como se eu estivesse distante dele.

Griffiths continua a chamar por mim, mas quando percebe que eu não vou me aproximar voluntariamente, ele estende a mão em direção a minha, eu deixo que ele a pegue, seu toque é real demais.

Abro meus olhos e enxergo novamente um oceano azul, como ondas calmas e suaves de uma praia paradisíaca. Os olhos de sr. Griffiths.

Pisco várias vezes antes de entender onde eu estou.

- Você adormeceu, Cordélia - Senhor Griffiths pega o livro que estava caído sobre minhas pernas e coloca do meu lado no sofá. - Já passam das duas da manhã. Vamos. Eu te acompanho até sua casa.

Ainda estou processando: Sr. Griffiths me levou para uma sala "secreta", leu comigo até eu adormecer, me acordou gentilmente e ofereceu para me acompanhar até minha casa. Forço minhas unhas na palma da mão para me certificar de que isso é real. Repasso o dia, o mês e o ano em que estamos. Tudo certo. Não estou mais sonhando.

Griffiths me oferece a mão, que eu aceito assim que me  levanto. Ela é agradavelmente quente e duas vezes maior que a minha.

- Estava sonhando, Cordélia? - Ele me pergunta.

- Por que?

- Chamou por mim enquanto estava dormindo - Griffiths me olha entretido e altivo.

Seria um bom momento para desaparecer.

Caminhamos pela biblioteca iluminada apenas pelas luzes fracas nas paredes.

Vivi já foi embora e não viu nem eu, nem o sr. Griffiths saindo. Imagino o que ela deve estar pensando.

Fico um pouco receosa de ele me levar até o campus, mas não é como se sair pelas ruas de Londres de madrugada e sozinha fosse uma opção melhor.

Senhor Griffiths abre a porta do carro para que eu entre e em poucos segundos ele já entrou pela outra porta.

Ele já conhecia o percurso até a faculdade e, depois que entramos no campus, indico o caminho para chegar no meu dormitório que fica em um prédio de madeira antigo, próximo à biblioteca principal, virado para a rua, onde consigo observar a vida de vizinhos que não frequentam a universidade. Griffiths estaciona o carro na frente do prédio. Eu, ainda tímida, olho para ele e percebo que ele já me olhava. Sinto meu rosto esquentar.

- Obrigada pela noite, senhor Griffiths. A Ala Demetrificada é linda, agradeço por compartilhar comigo.

Ele aquiesce e desvia o olhar do meu para observar o prédio que eu moro por alguns instantes, depois retorna a me olhar.

- Foi uma noite agradável, Cordélia. - Sr. Griffiths fala baixo, íntimo, com o sotaque britânico atraente. Eu o encaro sem conseguir evitar. Os olhos azuis claro dele são penetrantes demais. Em seu rosto, noto finas linhas de expressão e um olhar experiente. Deve ter quase 40 anos. Um frio na barriga me acomete, tudo só o deixa mais bonito. Quero o beijar, senti-lo me tocar.

Griffiths, ao perceber que eu não desviaria o olhar e tampouco diria algo, me direciona um de seus leves sorrisos de canto. Sim, eu estava estupefata, admirando a beleza do homem e ele percebeu. Um instante depois, ele sai do carro para abrir minha porta. Estende a mão e eu a pego - agora está mais fria. Ele me acompanha até o hall.

- Senhor Griffiths - o chamo antes dele ir. - Como vai me avisar quando não estiver disponível para me acompanhar na Ala sem o meu número de celular?

Ele sorri como se guardasse mil segredos e diz:

- Você saberá, Cordélia. - Então vira, desce os poucos degraus e vai embora.

Com amor, Cordélia (Daddy!)Onde histórias criam vida. Descubra agora