O Despertar

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Eu e Vivi passamos o dia nos entupindo de cafeína e energético para tentar não dormir. Em algum momento depois do almoço Vivi pediu para eu cuidar da recepção enquanto ela ia ao banheiro. Quarenta minutos depois ela ainda não tinha voltado. Quando fui atrás, descobri Vivi dormindo sentada no vaso sanitário em uma das cabines. Fora esse episódio, o dia correu tranquilo e pouco movimentado.

Saio da biblioteca pouco antes das oito da noite. Senhor Griffiths não apareceu e eventualmente perdi as expectativas de encontrá-lo.
Estou atravessando a rua quando meu celular toca e eu atendo.
- Delia, você o perdeu por apenas alguns minutos. - Vivi fala do outro lado da linha.
- Quem? O que aconteceu?
- Senhor Griffiths acabou de chegar. Minutos após sua saída.
- Ele está com alguém? - Pergunto.
- Por que?
- Ah, não sei... Eu volto? - Pergunto, e me sinto um pouco perdida sem entender o que é essa sensação dentro de mim. Parece me sufocar. Não entendo essa minha urgência em querer ver um homem que até duas semanas atrás não sabia da minha existência.
Sinto vontade de voltar para a biblioteca apenas para poder olhar para Griffiths. Me sobe um frio na barriga.
Vivi não responde minha pergunta. Entendo o recado por trás do seu silêncio.
Seguindo por esse caminho, vou acabar em um lugar onde eu não quero. Provavelmente vou ter que enfrentar, mais uma vez, traumas recentes demais.
- Já estou longe e estou cansada. - Decido - O verei outro dia.
- Tudo bem, Delia, tudo bem se sentir assim. - Vivi diz em tom de consolo. Acredito que ela tenha se lembrado da última situação em que deixei meu coração atrapalhar minha vida e a queda foi íngreme e brutal. Vivi não estava lá, mas quando cheguei em Londres ainda tentava voltar ao meu antigo eu e ela me ajudou. Acredito que minha amiga não queira repetir a dose.
Depois que desligamos a ligação me sinto vazia. A cada passo que dou enxergo com mais clareza o que eu estou começando a fazer. As noites mal dormidas, a balada, as drogas, ver senhor Griffiths em corpos de estranhos. A cada passo, acompanhado da batida ritmada do meu coração, percebo que estou me apaixonando.
Eu corro pelas ruas escuras e vazias de Londres sem destino. Meu coração bate forte. Eu só preciso liberar toda essa ansiedade. Não posso estar realmente me apaixonando. Não posso ser tão fraca a esse ponto, não depois de tudo o que eu passei.
Minha cabeça gira enquanto corro por ruas e mais ruas. O brilho da luz dos postes, dos faróis dos carros e dos semáforos passam em relance. Tudo está girando. Flashes de memórias começam a voltar em borrões... Olhos verdes, tatuagens, palavras tão doloridas quanto um chute e então o abandono. Continuo a correr e mais memórias vêm à tona. Cabelos pretos, grandes e ondulados, olhos tão escuros quanto o vazio do universo, um bar escuro e sujo. A lembrança de um quarto grande e abafado me faz sufocar. Continuo a correr.
Sentimentos que eu não tinha contato há muito tempo retornam e lágrimas surgem em meus olhos. A situação para a qual eu sempre retorno começa a aflorar em minha frente. Eu sou sempre insuficiente. Eu fico melhor sozinha. Eu não sei lidar com os meus sentimentos. Eu tenho medo, tanto medo.
Não quero lembrar ou sentir mais nada disso. Me concentro nos meus pés e no vento gelado soprando em meu rosto.
Continuo a correr, sem rumo, esperando que o cansaço vença minha ansiedade, que vença meus sentimentos que ameaçam emergir todos de uma só vez.
O ar começa a me faltar e quando me dou conta, encaro a escadaria que leva à biblioteca do senhor Griffiths, agora já fechada. Subo os degraus e, como se soubesse, empurro as portas gigantescas de madeira e elas se abrem. Começo a andar pelos corredores da biblioteca agora na penumbra da noite, iluminada fracamente pela luz da lua através dos vitrais entre as prateleiras.
Por que estou sentindo isso? E por que voltei para cá? Não aconteceu nada entre senhor Griffiths e mim. Ele está apenas sendo gentil. Ou estava. Ele não deve ter nem a metade dos sonhos que eu tenho com ele. Não está realmente interessado e cá estou eu, sofrendo por algo que nunca aconteceu e nem irá.
Faz mais de 24 horas que não durmo, mas não sinto sono. Eu só queria que não fosse tão complicado assim. Que eu não tivesse o passado que tive. Que eu pudesse não sentir tanto com tão pouco. Estou cansada, tão cansada, mas a ideia de voltar para casa me deixa mais vazia e a ansiedade volta a comprimir meus pulmões.
Meus pensamentos são interrompidos abruptamente quando me deparo com o meu reflexo. Estou suada e arfando. Meus cabelos despenteados e minhas olheiras roxas agora estão também avermelhadas e inchadas. Comecei a chorar em algum momento, não me lembro quando. Minha visão ainda turva me faz ver as estantes de livros se curvando, movendo-se. Meu foco fica cada vez mais precário.
Começo a reparar ao meu redor. A biblioteca está como da primeira vez que eu e senhor Griffiths saímos daqui de madrugada. Nem um barulho.
Caminho em direção a Ala Demetrificada.
O silêncio no lugar é absoluto. Começo a olhar os livros à minha volta, aqueles que deixamos separados para tentar decifrar a Ala. As xícaras ainda estão lá, empilhadas do jeito que deixamos na mesa principal, a minha sobre a dele, marcada por um ponto de batom na borda.
É como voltar para o último dia em que eu o vi e não sei como me sentir, porque não quero sentir. Não posso.
Algo gelado desce escorrendo pela minha bochecha e caminha pelo meu pescoço até chegar embaixo da minha blusa. Água. Não, não água. Passo as mãos em meus olhos e estou chorando.
Estou tão cansada, não quero mais sentir o que quer que isso seja. Eu quero apenas continuar em minha paz segura, sozinha. Meu olhos se fecham por um breve instante, um ar gelado parece acompanhar minha respiração e resfria todo o meu corpo. Não quero sentir. Estou tão cansada...

*

Sinto um movimento involuntário percorrendo meu corpo, me elevando. Meu pescoço inclina para trás. Um calor percorre a lateral do meu corpo. Alguém pega meu corpo e caminha, mas não consigo abrir meus olhos, estou tão cansada.
Ouço sons de carros e um leve motor ronronar. Sinto meu corpo balançar. Não sei o que está acontecendo, mas não tenho forças, nem ânimo para tentar entender.
Meu corpo movimenta de novo involuntariamente. Sinto um vento gelado e depois um calor bem vindo. Não consigo abrir meus olhos.

Com amor, Cordélia (Daddy!)Onde histórias criam vida. Descubra agora