Alfonso
Calmaria é um prenúncio de tempos difíceis — quase posso ouvir a voz do nosso padrasto, Halil, dizer.
É um bom aviso, embora a memória com relação a pessoa que me deu já não tenha mais o mesmo peso de antes em minha vida.
Ele terminou de criar a mim e a meus irmãos, foi um bom marido para a minha mãe, mas depois de sua morte, não paramos de descobrir esqueletos no armário do homem que aprendi a amar como a um pai.
Halil geriu uma vida dupla por toda sua existência, uma espécie de “o médico e o monstro” moderno e mesmo após tantos anos passados de sua morte, eu não sei dizer qual lado era o seu eu verdadeiro.
Ele se mostrou um padrasto dedicado para nós e marido amoroso para minha mãe, mas também deixou um rastro de destruição pelo caminho. Foi manipulador, mentiu e omitiu sem qualquer remorso, mexendo com o destino das pessoas à sua volta, como se fossem peças em um tabuleiro de xadrez.
Eu estou longe de ser um homem ingênuo e sei que uma visão bidimensional do mundo não é realista. Ninguém é completamente bom ou não. As pessoas oscilam dependendo do quanto são pressionadas. Entretanto, sou um crente de que a essência não muda.
E eu não tenho certeza se a de Halil era boa ou má.
Ando até a imensa janela da minha sala na Herrera Steel Group, a empresa familiar que eu e meus irmãos fundamos e que agora é reconhecida como a siderúrgica mais poderosa do mundo.
Quando papai morreu, nos deixou à beira da falência, mas meu irmão Cenk nos guiou durante todo o caminho, sacrificando sua juventude para ser o líder da família e nos fazer prosperar outra vez.
Ainda que na época amássemos Halil e segundo o desejo dele poderíamos nos acomodar e só viver a vida como jovens ricos da classe privilegiada, há orgulho enraizado na família Herrera. Foi a necessidade de reerguer o nosso nome o que fez com que nos dedicássemos, dando o próprio sangue para enfim conseguirmos nos tornar outra vez os mais ricos da Turquia.
Passo a mão pelo rosto, tentando adivinhar o que poderia dar errado se até mesmo a ameaça que pairava sobre Cenk, ainda resquício das ações de Halil no passado, foi eliminada.
Olho para as ruas da cidade onde nasci, já se esvaziando a essa hora, como se o silêncio da noite de Istambul pudesse me dar alguma resposta.
Sabendo que não vou conseguir dormir enquanto estiver me sentindo assim, mando uma mensagem para a mulher com quem havia combinado um jantar, desmarcando-o, e volto a me sentar à minha mesa, pegando novamente a pasta com documentos em que passei o dia trabalhando. Desde que meu irmão adquiriu uma siderúrgica no Brasil, temos feitos diversos investimentos no país, principalmente na área de turismo.
Estamos construindo um complexo hoteleiro no nordeste brasileiro que vai funcionar quase que como uma cidade independente. Uma vez que o hóspede chegar lá, não precisará sair para mais nada, pois haverá restaurantes famosos do mundo inteiro, um shopping center com as melhores marcas, além de outros benefícios regulares nesse tipo de empreendimento, como academias de ginástica, spa, entre outros.
A ideia é transformar o lugar em um paraíso, um refúgio para a elite.
Toco na pasta com a pesquisa de mercado que encomendei, já pensando na possibilidade de expansão do complexo turístico, mas antes que consiga iniciar a leitura, a porta se abre e Cenk entra.
— Não deveria estar em casa com Ophelia e as crianças? — pergunto, quando ele se senta à minha frente.
— No seu caso não há crianças e uma esposa envolvida, mas não deveria estar com a parceira da vez? — ele me devolve.
— Não. Eu desmarquei. E fico admirado como você e Emir estão sempre atentos à minha vida sexual.
— É meu irmão mais novo.
— Todos nós somos seus irmãos mais novos.
— Mas é o mais parecido comigo: intransigente, vingativo e avesso a compromisso. Conheço meus próprios defeitos e por isso os enxergo em você também.
— Exceto que a parte do “avesso a compromisso”, no seu caso, mudou. Ou sente saudade da época em que era franco atirador?
— Não mesmo. Eu tenho tudo o que desejo em casa. Nenhuma outra mulher chega aos pés de Ophelia para mim.
Eu não tenho como discordar que os meus dois irmãos souberam escolher as esposas. Tanto Malu, casada com meu irmão Emir, quanto lady Ophelia, são diamantes raros. E o melhor: adoradas pela minha mãe, o que não é uma tarefa fácil.
Apesar de ser gregária e gostar de muita gente à sua volta, Zehra, nossa progenitora, tem aquele tipo de amor ou antipatia instantânea por uma pessoa. Se gosta de você, colocará o mundo aos seus pés, mas, se por outro lado, não conseguir cair nas boas graças dela, não importa quem seja, ela não permitirá que se aproxime.
— Já teve a sensação de que algo está para acontecer, mas que você não sabe onde virá? — pergunto.
— Algo ruim?
— Isso.
— O tempo todo. Sou um realista com tendências pessimistas. Estou sempre esperando o pior e preparado para o apocalipse.
— Sim, acho que esse é um traço que herdamos do nosso pai. Entretanto, eu me sinto assim há semanas, mas ainda que eu tenha pensado e repensado a respeito, não consigo imaginar o que poderia ser.
— Talvez seja apenas preocupação excessiva mesmo — diz e isso vindo dele quase parece uma piada.
— Ophelia mudou você em um bom sentido.
— Não. Eu continuo um bastardo desconfiado e cínico em relação à maior parte da raça humana. A diferença é que eu encontrei minha rainha. Entretanto, ainda sou um crente de que, fora da família, qualquer um pode ser um inimigo. E por falar em inimigo, eu ouvi falar que nosso “amigo” de longa data, Jim Garret Puente III, está mesmo para ser preso a qualquer momento.
— É uma certeza? Porque tenho escutado boatos há meses.
— Sim, é uma certeza. Ele usou de tráfico de influência para fechar contratos com o governo americano. Os Estados Unidos levam a sério crimes de colarinho branco.
— É grave?
— Se o que eu ouvi for verdade, sim. As denúncias vão até de corrupção ativa à lavagem de dinheiro e o que é mais sério para o Tio Sam: fraude fiscal.
Sem que eu consiga controlar, me vem à lembrança o último encontro com Anahi Puente. A noite em que me permiti tocá-la pela primeira e única vez.
Ela é atrevida e orgulhosa, mas muito jovem também, assim como o irmão, Hayden. O que será feito dos dois, já que foi confirmada mesmo a prisão do bastardo do pai deles para breve?
— O que está pensando? — ele pergunta.
— Nos filhos.
— Corre um boato de que toda a sujeira poderá respingar neles.
— O garoto não tem dezenove anos completos. Ela, pouco mais de vinte. Ninguém vai acreditar que estejam envolvido em golpes.
— É não dá para imaginar mesmo. Principalmente o rapaz. É tímido, a própria imagem da apatia. Eu não duvido que Jim lhe impute parte da responsabilidade, no entanto. Ou melhor seria dizer, a maior parte da culpa, para livrar a própria cara. Mas não foi isso que vim falar com você. Se for confirmado o mandado de prisão, teremos que agir em uma outra frente.
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O Acordo - FINALIZADA
Roman d'amourAviso: pode conter gatilhos. Alfonso Herrera, herdeiro da família mais poderosa da Turquia, não é o tipo de homem que tem dúvidas sobre pegar para si o que quer, principalmente no que diz respeito a mulheres. Entretanto, por questões morais, não se...